DEU NO VALOR ECONÔMICO
Como ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o governador Sérgio Cabral não pode ter seu conhecimento do jogo parlamentar colocado em dúvida. Mas a aritmética mais rudimentar já antevia o resultado da votação dos royalties. Fluminenses e capixabas conseguiram arregimentar meia dúzia de votos para além de suas divisas estaduais na Câmara. Agiram como se o canto mais bonito do Brasil, que vai sediar os dois eventos esportivos mais gloriosos do mundo, não carecesse de aliados. Seria preferível chamá-los de ladrões e oportunistas. Para ser coerente, o primarismo só podia acabar mesmo em choro.
O que mais impressiona nesta sucessão de trapalhadas do governador fluminense na batalha dos royalties é a insistência no erro. Está claro que o Rio não pode perder R$ 7 bilhões da noite para o dia, mas não é chamando o resto do Brasil de covarde, como na manifestação da quarta-feira, que se vai conseguir reverter a derrota da partilha dos royalties no Senado. Cabral desprezou os discursos na manifestação de ontem. O Rio só precisa de música, explicou. Mas para vencer a aritmética terá que recorrer à política.
Inconformidade com as calçadas de porcelanato dos emirados fluminenses sempre houve, mas o direito das regiões produtoras aos royalties já adquiridos estava completamente fora de pauta. Só o desprezo pelo princípio de que o embate de ideias não passa pela desqualificação dos interlocutores pode justificar a vitória da emenda dos deputados Ibsen Ribeiro (PMDB-RS) e Humberto Souto (PPS-MG) na Câmara.
A ideia original do Executivo era remeter a questão dos royalties para uma lei a ser votada depois do marco regulatório do pré-sal. Por pressão dos Estados não produtores, um texto com um novo modelo de repartição começou a ser negociado entre Congresso, Palácio do Planalto e governadores. Foi nessa fase que Cabral radicalizou tanto com acusações públicas à "boiada, maioria burra que fica discutindo percentual" (Valor, 28/12/2009), quanto em bate-boca que o antagonizou com ministros do governo nas intermináveis reuniões em que o texto foi discutido no fim do ano passado.
Dessa radicalização, saiu aparentemente vitorioso com um texto que preservava, em grande parte, a fatia dos rendimentos de seu Estado com o petróleo acima e abaixo da camada de sal. O Congresso entrou em recesso e o governador parecia tão seguro de sua estratégia de enfrentamento que tratou de replicá-la na montagem do palanque da ministra Dilma Rousseff no Estado .
Ao invés de começar a bater perna pelo interior, onde parece lhe faltar votos, chegou a afirmar, de seu camarote de anfitrião na Marquês de Sapucaí, que não admitiria dividi-lo com Anthony Garotinho, adversário de seu projeto de reeleição. Nem Jaques Wagner, um dos mais próximos governadores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ousara colocar a questão nesses termos face à candidatura do ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, ao governo da Bahia.
Passado o Carnaval, não apenas a candidatura Garotinho havia avançado, como a boiada rival de Cabral já tinha sido contaminada pelo germe do antagonismo às pretensões fluminenses e capixabas. Contaram ainda com a pressão dos prefeitos - o exército mais organizado das eleições de outubro - que afluíram em manada a Brasília no dia da votação. Uma solução mais negociada foi tentada até a última hora, mas o Rio só aceitava tudo. Ficou sem nada.
Nem a derrota lhes devolveria a humildade. Numa referência indireta ao deputado gaúcho, que teve seu mandato cassado em 1994, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, atribuiu o resultado da votação a "uma gente que só entra na vida pública para fazer besteira". A tática terrorista arregimentou a Confederação Brasileira de Futebol e o Comitê Olímpico Brasileiro para atestarem a inviabilidade da Copa e da Olimpíada sem o dinheiro dos royalties.
A radicalidade da solução Ibsen levou o governador de São Paulo, José Serra, tão aquinhoado quanto o Rio pelo pré-sal, a se manifestar com a cautela de não somar ao calejado estigma de São Paulo contra a federação o tom empedernido da manifestação fluminense.
Nem a Dilma nem a Serra interessa buscar voto num Estado contaminado pela propaganda de que teriam sido omissos frente aos interesses locais. Mas a esta altura a entrada de ambos no front os coloca na condição de credores de Cabral - posição em que Lula reinava soberano.
A reversão do texto no Senado está longe de ser uma batalha perdida para o Rio. A começar pela escolha de argumentos mais racionais. O petróleo é tributado no destino. Sem royalty nem ICMS o Rio não sobrevive.
A renda gerada pelo minério é apropriada fora de seu local de produção, que é contaminado por problemas com violência e prostituição. Foi essa a lógica que mobilizou a legislação em vigor. A permanência acentuada desses problemas nos Estados campeões do petróleo indica que este é um problema que extrapola suas divisas - basta contar quantas vezes as forças nacionais de segurança já saíram em socorro do Rio.
Neguinho da Beija-Flor, um dos ideólogos do movimento, lançou o slogan "O Rio de Janeiro viu primeiro". Mas a alegoria desta nova etapa da exploração do petróleo no país parece ser outra. Por mais que Cabral tenha confiado no apoio de Lula ao quinhão fluminense, a situação do Rio já estava comprometida desde que o presidente enfiou as mãos no óleo e engatou o discurso da redenção nacional.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras
Como ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o governador Sérgio Cabral não pode ter seu conhecimento do jogo parlamentar colocado em dúvida. Mas a aritmética mais rudimentar já antevia o resultado da votação dos royalties. Fluminenses e capixabas conseguiram arregimentar meia dúzia de votos para além de suas divisas estaduais na Câmara. Agiram como se o canto mais bonito do Brasil, que vai sediar os dois eventos esportivos mais gloriosos do mundo, não carecesse de aliados. Seria preferível chamá-los de ladrões e oportunistas. Para ser coerente, o primarismo só podia acabar mesmo em choro.
O que mais impressiona nesta sucessão de trapalhadas do governador fluminense na batalha dos royalties é a insistência no erro. Está claro que o Rio não pode perder R$ 7 bilhões da noite para o dia, mas não é chamando o resto do Brasil de covarde, como na manifestação da quarta-feira, que se vai conseguir reverter a derrota da partilha dos royalties no Senado. Cabral desprezou os discursos na manifestação de ontem. O Rio só precisa de música, explicou. Mas para vencer a aritmética terá que recorrer à política.
Inconformidade com as calçadas de porcelanato dos emirados fluminenses sempre houve, mas o direito das regiões produtoras aos royalties já adquiridos estava completamente fora de pauta. Só o desprezo pelo princípio de que o embate de ideias não passa pela desqualificação dos interlocutores pode justificar a vitória da emenda dos deputados Ibsen Ribeiro (PMDB-RS) e Humberto Souto (PPS-MG) na Câmara.
A ideia original do Executivo era remeter a questão dos royalties para uma lei a ser votada depois do marco regulatório do pré-sal. Por pressão dos Estados não produtores, um texto com um novo modelo de repartição começou a ser negociado entre Congresso, Palácio do Planalto e governadores. Foi nessa fase que Cabral radicalizou tanto com acusações públicas à "boiada, maioria burra que fica discutindo percentual" (Valor, 28/12/2009), quanto em bate-boca que o antagonizou com ministros do governo nas intermináveis reuniões em que o texto foi discutido no fim do ano passado.
Dessa radicalização, saiu aparentemente vitorioso com um texto que preservava, em grande parte, a fatia dos rendimentos de seu Estado com o petróleo acima e abaixo da camada de sal. O Congresso entrou em recesso e o governador parecia tão seguro de sua estratégia de enfrentamento que tratou de replicá-la na montagem do palanque da ministra Dilma Rousseff no Estado .
Ao invés de começar a bater perna pelo interior, onde parece lhe faltar votos, chegou a afirmar, de seu camarote de anfitrião na Marquês de Sapucaí, que não admitiria dividi-lo com Anthony Garotinho, adversário de seu projeto de reeleição. Nem Jaques Wagner, um dos mais próximos governadores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ousara colocar a questão nesses termos face à candidatura do ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, ao governo da Bahia.
Passado o Carnaval, não apenas a candidatura Garotinho havia avançado, como a boiada rival de Cabral já tinha sido contaminada pelo germe do antagonismo às pretensões fluminenses e capixabas. Contaram ainda com a pressão dos prefeitos - o exército mais organizado das eleições de outubro - que afluíram em manada a Brasília no dia da votação. Uma solução mais negociada foi tentada até a última hora, mas o Rio só aceitava tudo. Ficou sem nada.
Nem a derrota lhes devolveria a humildade. Numa referência indireta ao deputado gaúcho, que teve seu mandato cassado em 1994, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, atribuiu o resultado da votação a "uma gente que só entra na vida pública para fazer besteira". A tática terrorista arregimentou a Confederação Brasileira de Futebol e o Comitê Olímpico Brasileiro para atestarem a inviabilidade da Copa e da Olimpíada sem o dinheiro dos royalties.
A radicalidade da solução Ibsen levou o governador de São Paulo, José Serra, tão aquinhoado quanto o Rio pelo pré-sal, a se manifestar com a cautela de não somar ao calejado estigma de São Paulo contra a federação o tom empedernido da manifestação fluminense.
Nem a Dilma nem a Serra interessa buscar voto num Estado contaminado pela propaganda de que teriam sido omissos frente aos interesses locais. Mas a esta altura a entrada de ambos no front os coloca na condição de credores de Cabral - posição em que Lula reinava soberano.
A reversão do texto no Senado está longe de ser uma batalha perdida para o Rio. A começar pela escolha de argumentos mais racionais. O petróleo é tributado no destino. Sem royalty nem ICMS o Rio não sobrevive.
A renda gerada pelo minério é apropriada fora de seu local de produção, que é contaminado por problemas com violência e prostituição. Foi essa a lógica que mobilizou a legislação em vigor. A permanência acentuada desses problemas nos Estados campeões do petróleo indica que este é um problema que extrapola suas divisas - basta contar quantas vezes as forças nacionais de segurança já saíram em socorro do Rio.
Neguinho da Beija-Flor, um dos ideólogos do movimento, lançou o slogan "O Rio de Janeiro viu primeiro". Mas a alegoria desta nova etapa da exploração do petróleo no país parece ser outra. Por mais que Cabral tenha confiado no apoio de Lula ao quinhão fluminense, a situação do Rio já estava comprometida desde que o presidente enfiou as mãos no óleo e engatou o discurso da redenção nacional.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras
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