Continuar com o modelo em que a banca é o centro do universo é flertar com o caos
PARIS - É sempre bom quando alguém diz as coisas como as coisas são, sem acolchoar as palavras. Como fez Xavier Vidal-Folch, colunista de "El País" ao falar sobre a estatização do Bankia, o quarto grupo bancário espanhol:
"As novas ajudas ao Bankia são um assalto ao Tesouro. Um assalto ao bolso do contribuinte", que subirá, se se completarem os planos do governo, a € 82,965 bilhões.
Completa com uma comparação: "É uma cifra superior do deficit da administração central e das comunidades autônomas [versão espanhola aproximada dos Estados brasileiros], que ascendeu, em 2011, a € 82,107 bilhões".
Posto de outra forma: há todo um escândalo -amplificado pela maior parte da mídia- cada vez que os governos gastam muito com funcionários, educação, saúde, bem-estar social. Mas faz-se ensurdecedor silêncio quando o gasto é para salvar bancos fracassados -e o Bankia está longe de ser o único.
Basta lembrar que mesmo os dois países mais refratários à intervenção do Estado na economia -Estados Unidos e Reino Unido- despejaram uma catarata de dinheiro público para salvar bancos pequenos, médios e até grifes como o Royal Bank of Scotland (Reino Unido) e o Citigroup (EUA).
O governo britânico usou o equivalente a R$ 394 bilhões para socorrer a banca. Washington torrou US$ 431 bilhões com o mesmo objetivo.
Só para comparar: o que os EUA fizeram equivale a despejar no colo da banca dois meses, grosso modo, de tudo o que o Brasil produz em bens e serviços.
No entanto, há um grito forte de "privatiza, privatiza" sempre que se fala de ativos públicos mal administrados -e, às vezes, até dos bem administrados. Mas ninguém deu um pio para dizer "estatiza, estatiza", quando a banca fracassou tão miseravelmente quanto o poder público. O Estado socializou o prejuízo, mas manteve o lucro em mãos privadas.
É como escreve John Feffer, do Instituto para Estudos Políticos:
"Wall Street continuou com sua exuberância irracional, seus pródigos bônus para suas elites e sua resistência até contra a mais modesta das regulações, o que sugere que o velho sistema ptolomaico -com Wall Street e o Consenso de Washington no centro do universo- ainda não deu lugar a uma revolução copernicana que desloque essas poderosas instituições de suas posições privilegiadas".
Concorda com Feffer o filósofo alemão Peter Stolerdijk, citado por Fernando Vallespín, sociólogo espanhol em "El País" de sexta-feira. Stolerdijk comentou que, se Montesquieu escrevesse sobre o mundo moderno, diria que aos três Poderes da teoria clássica haveria que acrescentar um quarto, "o poder especulativo", o das finanças.
Pena que esse quarto poder seja mais forte que os outros três e que 99% da responsabilidade pela crise seja atribuída aos outros três, o que distorce completamente a realidade.
Ah, o sistema de Ptolomeu, com a Terra no centro de tudo, resistiu 1.300 anos, lembra Feffer. Não creio que o planeta sobreviva nem a 1.300 dias mais de um sistema em que a banca é o centro do universo.
FONTE: FOLHA DE S. PAULO
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