- Folha de S. Paulo
"Não vou falar sobre política ou sobre economia", antecipou Dilma, na introdução do pronunciamento dedicado à "guerra contra o mosquito transmissor do zika". Palavras prudentes! Alegando "falar sobre política ou sobre economia", a presidente consagrou todos os pronunciamentos anteriores, desde a inauguração de seu primeiro mandato, à propaganda de seu governo e do PT, bem como à demonização da oposição e, por extensão, das vozes que ousaram criticar o "governo popular". Agora, pela primeira vez, sitiada por um país irritado, decidiu falar como presidente de todos, não como a chefona de uma facção. Quase conseguiu. Faltou-lhe uma módica dose de humildade, qualidade que desconhece por completo.
"Uma luta que deve unir todos nós", "um grande exército de paz e saúde": no pronunciamento, a senha nuclear é a unidade nacional e a metáfora explícita é o exército. De fato, sobram motivos para uma convocação geral à destruição dos criadouros do Aedes aegypti, que "pode estar na casa do seu vizinho" ou mesmo "na sua casa". Contudo, na arquitetura do texto, estão imantadas as digitais do marketing político. A senha e a metáfora servem ao sonho de qualquer governo acossado pelo descrédito: a fabricação de uma ferramenta positiva de coesão social. Na emergência dramática da microcefalia, o Planalto almeja encontrar um jeito de inverter a dinâmica política, substituindo a união contra o governo pela união contra o vírus.
"Mata-mosquitos da Dilma"? Há três décadas, na esteira do Plano Cruzado, José Sarney convocou os brasileiros a fiscalizarem o congelamento de preços, denunciando à polícia os comerciantes que praticavam o crime da remarcação. Desconfio que os "fiscais do Sarney" da propaganda oficial da época, um flerte com as técnicas do marketing totalitário, inspirariam a Dilma de cinco anos atrás, "mulher do Lula", "mãe do Brasil", personificação eventual de um projeto político hegemonista. Hoje, porém, sem espaço para tantos excessos, a presidente circunscreve-se à fórmula menos carregada do "exército da paz e da saúde". Dará certo?
No pronunciamento, confundem-se propositalmente dois objetivos distintos. Lá, no corpo do texto, está a meta legítima de provocar uma mobilização social contra o vetor transmissor do vírus. Mas lá está, igualmente, embora numa camada discursiva imersa, a ambição de recuperar uma hegemonia perdida. A ênfase na segunda, tentação perene, selaria o destino da primeira. Se Dilma realmente pretende mobilizar os brasileiros na erradicação dos criadouros do mosquito, deve renunciar ao sonho louco de usar o Aedes aegypti como fonte de uma restauração política.
Exércitos obedecem a um comando central, curvam-se a uma bandeira, marcham no ritmo dos hinos marciais. A presidente não terá um "exército da paz e da saúde", mas poderia obter algo mais eficiente: cidadãos informados que, mesmo desencantados com seu governo incompetente, engajam-se na eliminação dos focos de procriação do mosquito. O pronunciamento fracassa menos por seus excessos que por suas lacunas. Dilma falou sobre o presente (a epidemia) e o futuro (a vacina), mas esqueceu-se, providencialmente, do passado.
Às vésperas do centésimo aniversário do falecimento de Oswaldo Cruz, o Brasil está infestado pelo mosquito. A epidemia de microcefalia não é fruto, primariamente, da negligência das pessoas comuns, mas do desprezo de sucessivos governos pelos bens públicos e pelos bens sociais. Desde FHC, e por toda a longa era lulopetista, o Aedes aegypti sedimentou-se na paisagem brasileira, deflagrando surtos anuais de dengue. O país do Bolsa Família e do crédito consignado, das Olimpíadas e do verde-amarelismo balofo é o país da sujeira, do mosquito e da doença. Isso, Dilma não disse. Ela nunca permite que a verdade ordinária se infiltre no seu discurso político.
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