- O Globo
Um dia, acabamos por descobrir que não amamos tanto quanto gostaríamos de ter amado, não cuidamos de nossos filhos como pedia o nosso afeto
Em geral, o mundo está sempre atrapalhando nossa vida. O mundo e nossos compromissos com ele, os compromissos que o mundo nos obriga a ter, nunca são mais atraentes do que aquilo que consideramos necessário à nossa felicidade. Raramente servem a nosso bem-estar, como se fossem apenas obrigações desagradáveis das quais não podemos abrir mão, se queremos seguir vivendo. Podemos até nos acostumar a essas obrigações, mas elas sempre pesarão em nosso corpo e em nosso espírito, em nossas vidas.
Um dia, acabamos por descobrir que não amamos tanto quanto gostaríamos de ter amado, não cuidamos de nossos filhos como pedia o nosso afeto, não curtimos os amigos como devíamos, não divagamos nas nuvens sem preocupações, do modo que bem merecíamos. O mundo não nos permitiu viver do jeito que havíamos planejado, preferido e merecido.
O mundo é o obstáculo à vida, uma realidade inventada por não sabemos direito quem, a fim de nos fazer sofrer de todos os modos. O inimigo de nossos melhores planos, a quem somos obrigados a prestar vassalagem com o que temos de melhor a oferecer, da saúde de nosso corpo à nossa inteligência, do nosso tempo sem ócio à submissão ao dinheiro para sobreviver. O lugar do doloroso trabalho, das frustrações do reconhecimento, do abandono e da solidão involuntária. Nele, somos obrigados a obedecer a todas as regras sobre as quais ninguém nunca nos perguntou nada.
De vez em quando, ousamos preferir a vida, mesmo que isso seja objetivamente inútil, um pretensioso pecado de soberba que, de um modo ou de outro, nos causará algum mal. A vida será sempre sitiada pelo mundo, obrigada por ele a perder sua energia, a alegria que vislumbramos nela.
Quando uma pessoa amada se cura de uma doença diagnosticada inicialmente como fatal, o mundo nos diz que devemos tudo a ele. Estamos na segunda metade da segunda década do século XXI, devemos saudar as descobertas da ciência, o incrível avanço dos aparelhos e da tecnologia correspondente, os novos aparatos à disposição dos doutores capazes de nos salvar de tudo. Se tudo isso já não tivesse sido inventado, o tratamento teria sido um fracasso. Mas só pensamos em celebrar a vida, pois sabemos que foi uma força pessoal sem nome, a energia de uma vontade luminosa, a fogueira de um desejo invencível, o gosto imenso de viver, maior que as razões do mundo em volta, que curou definitivamente a pessoa amada. E usamos o mundo para registrar com subserviência esse recomeço.
É ainda uma enorme e vulgar incompreensão rir-se por grotesco ou desprezar por vazio o hábito contemporâneo do smartphone. Quem disse que esse é um hábito solitário, um solipsismo social de nosso tempo? O smartphone é a arma moderna na busca por um amigo, a última esperança de encontrar um afeto, um amor que o mundo real não tem mais como nos oferecer. Um criador de parcerias.
Assim como o hábito da selfie, praticado com o mesmo aparelho celular, é uma confirmação de nossa existência neste mundo governado por famosos vazios permanentemente registrados nas redes, nos jornais, na televisão. O Cristo Redentor, a Torre Eiffel, o Taj Mahal no fundo das selfies, não têm nenhum significado próprio; esses monumentos estão ali a serviço de nossa própria grandeza pessoal, acrescentando, sempre em segundo plano, algo retumbante a nossos rostos sorridentes e felizes. Que são o que interessa à vida.
O que há de sagrado no mundo é a vida dos outros. Não podemos ameaçá-la com nossos interesses, nem mesmo com nossas necessidades. É assim, por exemplo, que agem os políticos corruptos, opondo seu bem-estar aos interesses e necessidades dos outros. Um deles, preso recentemente, pediu dinheiro a seu corruptor em nome do “futuro de seus filhos”, como foi fartamente relatado pelos noticiários. Com isso, recebeu do empresário que o corrompia os recursos de que os outros dependiam para ir à escola, tratar-se num hospital decente, não passar fome. Ir ao mundo e viver sua própria vida.
Me escandalizo com o fracasso total do ideário moral, político e comportamental das mais belas e generosas vanguardas do século XX, vanguardas para as quais a vida era a razão de tudo e o mundo devia estar a serviço dela. Não sobrou nada dessas vanguardas esquecidas, a não ser uma literatura no mofo, considerada hoje de fantasia. Ou caricaturas de suas expressões fundadoras, palavras de ordem como paz & amor, é proibido proibir, a imaginação no poder. Será que a humanidade não deseja ser feliz?
Só nos resta ir em frente com nossas vidas, enquanto o verão ainda está aí com seu sol que nos abrasa.
*Cacá Diegues é cineasta
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