- O Globo
Detesto os que falam em nome de maiorias de fantasia, embora reconheça que sem as maiorias não existe democracia possível
Cultura são os objetos e as ideias do homem, tudo o que ele inventou num mundo que não foi ele que criou. A cultura é sempre o conjunto das criações humanas físicas e espirituais, em geral ou de uma nação em particular. Nesse sentido, o homem pode se gabar do fogo e da fala; enquanto os ingleses, por exemplo, se vangloriam da máquina a vapor e de Shakespeare.
Nem todo mundo chama cultura de cultura. Os cientistas sociais a estudam na cátedra de Antropologia. Os literatos, na Academia. Com a vitória universal do capitalismo, agora inclusive em sua versão chinesa, apelidada por Xi Jinping de Nova Era, tem cada vez mais gente que só a trata por “economia criativa”.
O samba feito na Rocinha também é cultura; assim como acabam sendo cultura os repetidos tiroteios por lá. Para citar batuques e balas, podemos chamar nossa cidade de puta sonhadora ou perdida de bom coração. Vagabunda de passado gentil também serve. Como a lembrança é igualmente cultura, só o ser humano a possui com tal complexidade, misturada com um pouco de imaginação.
Quem produz cultura é o indivíduo, alimentado pelo que tantos outros fizeram antes dele, pelas dicas que recebe desde que nasceu. O gênio de Albert Einstein não se manifestaria daquele jeito, se não tivessem existido, antes dele, Aristóteles, Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Maxwell e tantos outros. A soma deles todos resultou na sopa de conhecimentos da qual saiu o criador da Teoria de Relatividade.
No mundo real da natureza, só existe o indivíduo. O resto, como já dissemos, é cultura, aquilo que o indivíduo quis ou precisou criar, para melhorar a vida de todos. Ou, às vezes, apenas para sobreviver.
O Estado, por exemplo, foi criado para organizar melhor os homens. O Estado serve para permitir que vivamos juntos, sem precisarmos sair por aí matando uns aos outros para sobreviver. Mas foram os indivíduos que criaram o Estado, e não o Estado que criou os indivíduos. Essa representação de um conjunto de homens que precisam estabelecer regras de convivência serviu, desde o início, para que eles não brigassem pelo que podia ser repartido. Mesmo que não tenha sido criado com palavras tão sofisticadas, o Estado é um ditame superior à nossa vontade pessoal, para que essa se submeta ao interesse comum.
O limite do papel do Estado ficou claro e determinado quando inventamos o estado democrático de direito. Nessa invenção superior, a mais próxima do melhor em defesa da espécie, as regras foram consagradas pelo senso comum baseado na liberdade individual. E foram escritas para a segurança dessa liberdade, vigorando para todos e tudo. A cultura humana inventou o Estado para protegê-la da barbárie e seu ódio ao indivíduo.
O Estado não pode se meter naquilo que queremos fazer de nossa vida individual, não tem o direito de se meter em nosso rumo pessoal. Muito menos em nossos sonhos, expressos pela arte. Não tem nada a ver com o que permitimos nossos filhos de assistir e fazer num museu, num teatro ou num circo. Se nossas decisões não ferem o direito do outro, não esbarram nas regras indispensáveis à convivência, elas pertencem unicamente a nós, para o bem ou para o mal.
Não quero que o Estado me diga o que é certo e o que é errado na minha vida pessoal. Cabe a mim escolher o caminho que julgar conveniente, contanto que não atrapalhe a vida de ninguém. E não quero voltar a fazer as coisas escondido, como tantas vezes fui obrigado a fazer durante a ditadura militar. Não quero voltar a tratar o Estado como o inimigo que me censura e me impede de seguir o caminho que julgo mais conveniente.
Só como indivíduo posso saudar e viver a vida, vivê-la da maneira mais intensa (“se a morte fosse um bem”, dizia um poeta grego, “os deuses não seriam imortais”). Detesto os que falam em nome de maiorias de fantasia, embora reconheça que sem as maiorias não há democracia possível. Mas elas só pensam em manter seus privilégios no conjunto de seus iguais, enquanto as minorias estão sempre empenhadas em lutar por seu espaço e seus direitos.
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Não sei se ainda adianta procurar por ingressos, me disseram que o teatro já está lotado até o fim da temporada. Mas fique de olho e, se der, não deixe de ir ver o espetáculo com Caetano Veloso e seus filhos Moreno, Zeca e Tom, no teatro. Caetano é capaz de harmonizar os meninos em torno do que há de melhor na música, com serenidade, humor e delicadeza (coisas que andam faltando tanto no Brasil), sem deixar de ser, como sempre, radical em suas ideias. Um espetáculo sobre pais e filhos, em que a mãe é o personagem ausente que estrutura tudo. Todo homem precisa de uma mãe, como diz a comovente canção de Zeca Veloso.
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Cacá Diegues é cineasta
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