segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Onze homens sem uma sentença | Fernando Limongi

- Valor Econômico

Quem deveria arbitrar conflitos entrou de corpo e alma na briga

Marco Aurélio, ministro do Supremo Tribunal Federal, afirmou que o país enfrenta uma grave crise institucional. Sugeriu que se o Senado "pode rever uma prisão, pode rever também uma medida acauteladora" - com a ressalva de que "não quis incentivar o Senado a uma rebeldia."

O ministro, portanto, disse que não veria como rebeldia uma reação do Senado que contrariasse a decisão da Primeira Turma. Ou seja, a grave crise pode ser lida da seguinte forma: Marco Aurélio, seu nome de imperador já o sugere, não veio ao mundo para ser derrotado. Sinalizou que poderia convocar forças auxiliares, o Senado, para reverter o quadro.

Gilmar Mendes, o ministro presidente, impossibilitado de votar por estar relegado à Segunda Turma, respondeu de bate-pronto, pondo a cavalaria na rua em plena sessão do TSE: "E aí aparecem uns aproveitadores, têm moral às vezes muito baixinha, mas que começam a fazer um populismo constitucional nesta área. Tipos que a gente conhece e diz: 'já vimos você rodar bolsinha'. (...) Ora bolas. Vá catar em outra freguesia".

A tréplica não tardou, foi taxativa e com final adornado com chiste já conhecido: "Com todo o respeito a todas as opiniões, não há uma dúvida jurídica aqui. O direito é claríssimo. Respeito todos os pontos de vista e acho que as pessoas na vida têm direito à própria opinião. Mas não aos próprios fatos. As pessoas todas podem ter a sua opinião política a respeito dessa matéria, menos eu que não sou comentarista político" afirmou Luís Barroso.

O debate de alto nível, sobretudo no apreço com que os colegas se tratam e retratam, nada tem a ver com doutrinas, princípios e a Constituição. A discórdia que cindiu o Supremo diz respeito ao artigo 319 do Código de Processo Penal, ou mais precisamente, se há ou não distinção entre recolhimento e prisão. Uma turma acha que não há distinção, outra que sim e que, portanto, Aécio não está preso, mas recolhido.

Como sempre, a imprensa convocou os especialistas de plantão e o resultado foi o esperado: há os que se filiam à turma liderada por Gilmar e há os que pendem para o lado de Barroso. Para prever a opinião dos consultados, o que também não surpreende, basta saber como se posicionam em relação às desventuras do atual presidente da República. Para a turma que está com Temer, a Constituição foi violada e um senador não pode ser preso. Para os inclinados a aceitar as denúncias de Janot, recolher não é prender.

As posições em relação a casos anteriores, como os de Delcídio Amaral, Eduardo Cunha e Renan Calheiros, mereceram menor atenção. Para os dois lados, incluindo os membros do STF, tudo se adapta a interesses de curto prazo. Às favas com a coerência, para parafrasear Gilmar Mendes.

As turmas, é fato, estão em constante recomposição em razão dos cálculos de sobrevivência política. São coalizões que se formam ao sabor das prioridades do dia, forçando reorganização de alianças e de princípios norteadores. O PT se abrigou na turma de Temer porque sua prioridade, como a do presidente, é fugir da punição. O PSDB, para fazer jus ao folclore, se divide entre os que priorizam o abrigo do governo para escapar do castigo imediato e os que miram as eleições de 2018 e querem se afastar do governo impopular.

As duas turmas têm assento e tomaram conta do STF. A clivagem fundamental que divide a política brasileira, já faz algum tempo, cinde os Guardiões da Constituição. Quem deveria arbitrar os conflitos entrou de corpo e alma na briga.

É de se esperar que os membros do Supremo tenham visões distintas da política e do direito e, que, portanto, se dividam. O problema não é o conflito, mas que seus membros sejam incapazes de atuar como integrantes de uma instituição, que se mostrem incapazes de tomar decisões com o peso e a autoridade esperada de seu papel constitucional.

O episódio da semana passada, para além da falta de decoro e civilidade que o marcou, mostrou que os membros do Supremo sequer se sentem forçados a acatar suas próprias decisões. Para trocar em miúdos, Marco Aurélio afirmou que seus colegas do Supremo não estariam capacitados a interpretar corretamente o texto constitucional. Gilmar desqualificou de forma contundente seus pares, questionando sua integridade moral. A autoridade da corte está em questão e o questionamento vem de dentro.

O problema institucional, portanto, é grave. A sua natureza, contudo, não é a que o Ministro Marco Aurélio lhe emprestou, mas a captada pelo título de obra recentemente da FGV-Direito publicada sobre o STF: "Onze Supremos". Uns querem ampliar a tutela sobre a política, outros defender seus amigos políticos, outros os interesses da corporação e, por fim, há os que só olham para o seu ego.

Mesmo nas raras ocasiões em que o STF se pronuncia institucionalmente, os ministros se reservam ao direito de divergir, mantendo seu entendimento prévio. Tome-se o caso das prisões em segunda instância. A decisão do plenário não foi levada em conta em decisões posteriores de Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello. Os Supremos não acatam a decisão do Supremo.

Este arranjo institucional, ou melhor, esta falta de arranjo institucional, é insustentável. É um convite ao caos legal. O Supremo Tribunal Federal, para ser exato, é ator inexistente. Ministros decidem monocraticamente. Decisões coletivas são raras. O resultado é uma constante, desmedida e incoerente intromissão na ordem política. São onze homens e nenhuma sentença.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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