segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Cacá Diegues: Meu caro amigo

- O Globo

Sei que você não deve ter votado nos eleitos. Mas não se agaste. Continue defendendo aquilo em que você acredita

Meu caro amigo. Como todos nós sabemos, mesmo os mais ímpios, hoje é véspera de Natal. Não me lembro se você é cristão, se professa fé ligada ao aniversariante de amanhã, ou se não tem nada a ver com isso. Tanto faz. O importante é a ideia de uma humanidade solidária, um conceito que há dois mil anos vem mexendo com o pensamento ocidental e deixando traços, alguns bem fortes, em outras religiões e ideologias pelo mundo afora. Sei que nessa ideia você acredita.

Gostei muito do texto de Milan Kundera sobre a amizade, texto que você me mandou por WhatsApp, a título de cartão de Natal. Dá vontade de ficar lendo por muito tempo, para ver se o que está lá se torna realidade por milagre divino ou inspiração dos homens. Ali, Kundera diz que a amizade é indispensável para a integridade do próprio eu e que, através dos amigos, podemos nos olhar com mais proximidade. Um amigo não empresta apenas um objeto que nos é necessário; ele empresta também o verbo, empresta o ombro, empresta o tempo. Na dor, um amigo entra contigo aonde for e sai do fracasso a teu lado. “Que a vida e os amigos nos ensinem a cuidarmos uns dos outros, cada vez mais e sempre”.

E aí o cartão virtual se completa com Zezé Motta a cantar, tendo ao fundo imagens coloridas, desenhos populares sobre costumes brasileiros, com brincadeira de roda, roda de samba, viola nos braços de uma moça, pipas no céu, noites na beira de uma praia. E Zezé canta, naquele seu grave gracioso, sem instrumento musical algum a lhe importunar o canto: “Botei uma flor na janela, pra Iemanjá ver do mar, da lua olhando pra ela, São Jorge vai abençoar, com a força que vem com as ondas, com os raios que vêm do luar, encontro amor e alegria, pro ano que vai começar”.

Bem, não sei se encontraremos todos amor e alegria quando 2019 começar. Esperemos que sim. Por enquanto, apenas cansados, saudemos a ideia de que todos os homens são iguais, embora cada um seja bem diferente do outro.

Temos todos o direito às mesmas oportunidades na vida, cada um usa a sua como achar conveniente. O resultado é responsabilidade de cada um e é o que vai qualificar nossa existência. Esse é o básico. Devemos ser felizes conforme entendamos a felicidade. Mas se a prática de nossa felicidade fizer mal a alguém, perdemos o direito a ela, pois não é justo que a alcancemos às custas da desgraça alheia. É para isso que temos consciência e sentimento, além do prazer. Para construir nossa vida com os outros, o amor próximo e o amor distante. Distante, mas não menos fundamental.

Sei que, na última eleição, você não deve ter votado nos eleitos. Mas não se agaste. Continue defendendo aquilo em que você acredita, sem torcer por um desastre para o que a maioria escolheu. Milhões de brasileiros lutam contra a fome, contra a desigualdade, contra a falta de um abrigo, contra a dor cotidiana física e moral. São quantos Maracanãs cheios? Para ganhar esse jogo, ou chegar o mais perto possível da vitória, precisamos de humanas prorrogações, às vezes longas. Não jogamos contra outro time da casa, nem se sabe direito de onde vem nosso poderoso adversário. Há controvérsias.

Gosto de você, amigo, mesmo que não nos vejamos tanto. Mas não se ama com os olhos, eles só servem para espionar o mundo que nem sempre será o que distraídos sonhamos dele. Os olhos podem conferir a injustiça. Mas é com outros órgãos mais poderosos, a mente e o coração, que batalhamos pelo fim dessa interminável tragédia humana que nos consome com inútil culpa. Diante dela, não seremos piedosos, não posaremos como superiores diante dos que sofrem mais do que nós. Trataremos a piedade como arrogância, lutaremos apenas pelo que deve ser.

Obrigado por me lembrar, em seu zap natalino, do que podemos valer vivos nesse mundo . Não existo pelo que fiz no passado, mas sinto falta dos amigos que não estão mais aqui. Como a heroína do “Central do Brasil”, do Waltinho, sinto falta de quase tudo. Sinto sobretudo saudade de meu corpo jovem. Ele me permitia jogar pelada mais de uma vez por semana, namorar por noites seguidas, passar o dia na praia em dia de verão, como esses que estão fazendo brilhar de sol e esperança o Rio de Janeiro.

Não se esqueça, Zeca: como nunca somos uma coisa só, seja sempre a melhor versão de você mesmo. Renata lhe manda um beijo. Um abraço do certamente mais velho de seus velhos amigos velhos.

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