- Valor Econômico
Caminhoneiros são levados aos palácios para dialogar
A sensação de solidão de quem experimenta o poder é bastante conhecida e bem documentada. Não são poucos os relatos de ex-chefes de Estado e ex-presidentes abordando o ônus de escolhas solitárias e o isolamento imposto por títulos provisórios e passageiros - isso quando se vive em democracias. Jair Bolsonaro comemorou, no mês do Natal, o impressionante número de 8,2 milhões de seguidores no Instagram. No Twitter, são quase 2,7 milhões. Sem dúvida são feitos para quem aposta no exercício do poder sem intermediação, em uma "nova relação direta entre o eleitor e seus representantes", como o presidente eleito afirmou na ocasião de sua diplomação ao cargo.
Bolsonaro está certo ao dizer que "as eleições revelaram uma realidade distinta das práticas do passado", mas a experiência de quem já teve o poder nas mãos pode lhe servir de boa conselheira.
"Como é que você fala com o outro quando você vira presidente da República?", perguntou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a uma plateia formada por jovens numa tarde do último mês do ano deste 2018, véspera em que Bolsonaro atualizou os dados de seu séquito virtual. FHC falava na ocasião do lançamento de seu último livro, "Legado para a juventude brasileira", escrito em parceria com a educadora Daniela de Rogatis. A obra compila diálogos de ambos com jovens, de 2014 a 2018, sobre a realidade brasileira. Uma tentativa de alertar a juventude, sobretudo os nascidos em berço esplêndido, sobre suas responsabilidades, seu protagonismo e o papel da política em uma nação democrática.
Quando se é presidente, os outros costumam lhe dizer apenas o que você quer ouvir, atestou FHC. Sociólogo, Fernando Henrique desenvolveu uma tática para furar "as bolhas" que cercam a Presidência e enxergar melhor a realidade do povo. Puxava conversa com pessoas que lhe serviam café da manhã nos palácios, geralmente de corporações militares. Tentou fazer amizade com o piscineiro que trabalhava há anos no Palácio da Alvorada e conviveu com Juscelino. Mas foi com Dalina, a senhora que cuidava das plantas do segundo andar e fazia parte da limpeza do Alvorada com quem o então presidente estabeleceu contato mais direto. Certo dia Dalina pediu ao presidente da República que fosse à missa. A maioria dos funcionários do Palácio era evangélica. Católica, Dalina queria que seu lado espiritual fosse prestigiado pelo líder maior. "Eu fui à missa, várias vezes. Eu ia para ter algum elemento de solidariedade para com a Dalina."
Sem conhecer o diferente, sem enxergar e sem ouvir o divergente, nada muda e os mandatários seguem aprisionados em suas bolhas, refletiu o ex-presidente. Fernando Henrique corrobora com a tese de Bolsonaro, de que temos hoje uma realidade bem distinta do passado. O sociólogo afirma que o fundamento da liberdade não pode mais estar ancorado às escolhas individuais apenas. Cabe ao Estado regular essas várias liberdades, ou deixará de existir democracia. Esse novo mundo permite, porém, que se escolha com quem se quer conectar. "E, de repente, as pessoas vão para a rua, se manifestam, e isso tem efeito, como na França, com os 'coletes amarelos'. Hoje as pessoas têm a possibilidade de pôr em xeque a ordem estabelecida." A grande inquietação das democracias mundo afora é o que se coloca no lugar da tal ordem estabelecida, contestada por uma comunicação instantânea movida mais por sentimentos do que pela razão, como diagnostica FHC.
Bolsonaro terá que fazer escolhas e entender os limites de regulação das liberdades, que não se impõem à força num regime democrático. Seu gabinete é de iguais, a despeito das divergências já sabidas e esperadas entre os liberais e os militares. É provável, assim, que seja ainda mais difícil para o novo presidente da República romper as tais bolhas do mundo real, que vão muito além dos jardins da internet. Testes não faltarão. O primeiro e mais desafiador será a negociação com os caminhoneiros, nossos coletes verde-amarelos.
O futuro ministro da Cidadania, Osmar Terra, que é deputado, começou antes da posse a costurar nos bastidores um anteparo para evitar o desastre logo na largada do governo Bolsonaro. Terra é visto como uma espécie de interlocutor da categoria. Em 2015, como parlamentar, aproximou-se de líderes caminhoneiros que iniciaram um movimento grevista pouco exitoso, mas não menos preocupante. Em 2018, quando o Brasil parou com a greve dos caminhoneiros, Osmar Terra foi chamado porque o governo de Michel Temer não conseguia identificar quem de fato eram os líderes que comandavam a greve nas estradas. "Eu sabia quem eram os líderes verdadeiros e os aproximei do governo." Agora, Terra está repetindo o mesmo roteiro para Bolsonaro. Apresentou os líderes caminhoneiros aos futuros ministros da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e da Agricultura, Tereza Cristina. A data de uma próxima reunião já está marcada para o dia 20 de janeiro. Ficou decidido, conta o ministro Osmar Terra, que o governo Bolsonaro vai se reunir com os caminhoneiros pelo menos duas vezes por ano, em janeiro e julho, até o fim do mandato. "Não podemos ter outra greve igual aquela de maio de 2018. Então eu estou caminhoneiro, junto com eles."
Os caminhoneiros ajudaram a eleger Bolsonaro e a rede de WhatsApp formada na greve de 2018 deu sustentação a uma campanha organizada e muito bem-sucedida do futuro presidente. O diálogo com o poder, no entanto, não é feito pelas redes sociais. Os líderes dos caminhoneiros já foram levados aos palácios, os mesmos onde ficavam o piscineiro e Dalina, para dialogar. O mundo está conectado, é global, mas a essência da liberdade, numa democracia, segue inalterada. "Você têm opções, mas tem que entender que as suas opções afetam o outro. E é melhor que elas sejam tomadas em conjunto", lembra FHC. Os 8,2 milhões de seguidores representam menos de 4% dos 209,2 milhões de brasileiros.
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