- O Globo
Em meados de 2013, o Papa Francisco esteve no Brasil para participar da Jornada Mundial da Juventude, encontro de jovens católicos realizado no Rio de Janeiro. O 266º Papa da Igreja Católica, o simpático Jorge Mario Bergoglio, havia sucedido ao misterioso Bento XVI, em fevereiro daquele mesmo ano. Tive a intuição de que, daquela visita, podia sair um filme oportuno e belo. Renata me incentivou a concretizar a ideia. Segundo ela, só nós podíamos realizar um documentário sobre Francisco, pois “o Papa era argentino, mas Deus é brasileiro”. Nosso “Rio de fé”, o título do projeto, foi uma das mais belas experiências cinematográficas de minha vida, infelizmente pouco difundida devido à distribuição precária dos DVDs, plataforma escolhida desde o início do projeto.
Havia algo de original e revolucionário naquele chefe daquela igreja, a mais tradicional da história do cristianismo. Mas não era apenas no que dizia em seus discursos, sermões e conversas com a população. Era sobretudo em seus gestos e iniciativas, que só viravam escândalo depois de praticados, quando finalmente compreendíamos o que havia acontecido. Foi assim o tempo todo, no encontro inaugural com políticos convencionais, depois com fiéis do candomblé, com favelados de uma comunidade considerada perigosa, com meninos, meninas e outros gêneros juvenis, com a multidão que lotou a Praia de Copacabana em sua despedida. Compreendemos que o bem não era monopólio de nenhuma igreja, mas um valor indispensável à sobrevivência da humanidade.
Curiosamente, naquele mesmo ano, o Brasil se mobilizava com as manifestações de rua em defesa dos que não podiam pagar nem mais um centavo pelo transporte que eram obrigados a usar. Um movimento espontâneo que quebrou a ilusão de que um governo “popular” estava provendo tudo de que a nação precisava, que estávamos a caminho da Parusia levados pelas mãos de políticos iluminados. Hoje, parece claro que 2013 marcava a fundação de um novo momento na história social do país. Poucos brasileiros interessados pelo Brasil perceberam isso.
Francisco, ao contrário da intolerância política hoje na moda, dizia que a misericórdia de Deus não tem limites, incluindo aí até quem não crê nele. Esses deviam seguir sua própria consciência para distinguir o bem do mal, o que é imprescindível. O jornalista italiano Eugenio Scalfari, 94 anos, fundador do jornal “La Repubblica” e amigo do Papa argentino, publicou, em 2018, entrevista com Francisco, em que este diz que “não existe um inferno, o que existe é o desaparecimento das almas pecadoras”. Sabemos, por experiência tanto teológica, quanto científica, que Deus criou um universo dinâmico, em constante evolução. Sua preocupação não é apenas com o que é, mas sobretudo com o que virá a ser. A principal linguagem descoberta pelos humanos é a da esperança.
Além da esperança, a humanidade desenvolveu também sua memória histórica, para não se esquecer de como as coisas eram, não se esquecer do que foi bom e do que foi ruim. A memória talvez seja a matéria mais importante da civilização. O corpo do pintor Salvador Dalí, um dos gênios do século XX, foi recentemente exumado para um exame de comprovação de paternidade. A primeira observação do secretário-geral da Fundação Gala-Dalí, assim que havia terminado a exumação, foi a de que o bigode característico do grande artista, morto em 1989, estava “na posição clássica, marcando dez horas e dez minutos”.
Enquanto nossos líderes, como o deputado Rodrigo Amorim, desprezam, subestimam e ofendem os indígenas, desejando que eles deixem o Brasil exclusivo aos herdeiros dos europeus que invadiram com violência e rapinagem o território de todos, o Papa Francisco anuncia seu apoio ao Pacto Global de Migração, proclamado pela ONU, denunciando as restrições a ele como uma volta ao que a humanidade ocidental já foi há mais de cem anos. Esse ataque aos índios é da mesma família de outras discriminações de toda natureza, de raça a ideias. É como se no mundo só coubessem os que são como somos, nosso maior inimigo sendo portanto a diferença. Justamente aquilo que mais enriquece nossa presença no mundo.
Os primeiros homens não sabiam o que era o Sol, para que ele servia. Aí começaram a pensar sobre isso, curiosos a propósito da natureza daquela bola de fogo e o que podiam fazer com ela. A cada descoberta dessa, foi sempre possível melhorar nossa vida material e nos renovar espiritualmente. Aceitar e, eventualmente, vencer o mistério constante levou o homem a se civilizar. É isso que está sempre presente em todas as ideias “chocantes” do Papa Francisco.
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