Economista retraça políticas aplicadas desde o governo FHC para demonstrar que, ao contrário do que afirmou o ministro da Economia, Paulo Guedes, o país esteve longe de ser aprisionado pela ideologia de centro-esquerda.
*Benedito Rodrigues de Moraes Neto | Ilustríssima / Folha de S. Paulo
Em mais de uma ocasião, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que, no período recente, o Brasil foi aprisionado pela social-democracia e que sua proposta objetivava libertar o país dessa prisão. Tentaremos verificar em que medida a avaliação de um excesso de social-democracia corresponderia à realidade histórica de nosso país.
Evidentemente, o ministro se referia ao período que vem desde o governo FHC, pois não haveria qualquer sentido em incluir as presidências de José Sarney e Fernando Collor, por motivos bastante claros: o primeiro esteve inteiramente às voltas com sucessivos fracassos na luta contra a inflação; o segundo levou essa luta ao paroxismo do voluntarismo inconsequente, além de pôr em prática, ainda que de forma incipiente, algumas das propostas mais caras à economia liberal.
Também o período do presidente de um partido que tem em seu nome a social-democracia, o PSDB, não se ajusta bem às críticas de Guedes. Isto porque a luta contra o monstro da inflação continuou dominando a cena, com o bem-sucedido Plano Real, que começou no governo Itamar Franco e se consolidou no governo FHC. Sem dúvida brilhante em sua concepção e implantação, o plano sofreu forte crítica dos partidos mais à esquerda.
Depois desse momento, houve a continuidade da preocupação com a gestão macroeconômica, com a criação do chamado tripé, constituído por meta de inflação, equilíbrio fiscal e flexibilidade cambial. Se juntarmos tudo isso ao grande esforço pelas privatizações, com destaque para a área das comunicações, fica a pergunta: onde está aí a “prisão social-democrata”?
Pode ser que o envolvimento com a questão macroeconômica tenha tolhido esse lado do PSDB, que talvez pudesse desabrochar em outro contexto. De qualquer forma, fica claro que a crítica de Guedes se refere mesmo aos quase 14 anos do PT na Presidência. Nossa questão se coloca, então, de modo mais específico: em que medida a crítica ao excesso de social-democracia se ajustaria às gestões petistas?
Comecemos com um aspecto absolutamente crucial para caracterizar uma gestão social-democrata, em contraposição a uma de matiz liberal: a política tributária. Talvez a mais característica propositura social-democrata seja a implementação de uma tributação bastante progressiva, ou seja, que cobre impostos proporcionalmente maiores dos que auferem renda maior.
Sabe-se que as alíquotas de imposto sobre a renda são extremamente elevadas para níveis elevados de rendimento nos países de presença mais forte da social-democracia, como os da península escandinava. Mesmo no caso dos Estados Unidos, país que apresenta distância bem grande em relação à social-democracia, essa questão da progressividade da tributação diferencia fortemente as gestões dos partidos Democrata e Republicano, algo reforçado nos anos recentes.
Uma gestão democrata se aproxima, nesse caso, respeitando os limites americanos, de uma proposta social-democrata, com elevação da progressividade dos impostos. Uma gestão republicana, inteiramente impregnada da concepção liberal, rapidamente trata de aumentar a regressividade tributária, sob o argumento de que a ideia social-democrata inibe o ímpeto das pessoas para o esforço produtivo.
Pois bem, isso tudo é bem conhecido. O interessante é observar o rebatimento por aqui dessa questão tributária. Ao ler a observação de Guedes, pode-se imaginar que a implantação de uma estrutura tributária extremamente progressiva pelos “social-democratas de centro-esquerda” no poder por 14 anos precisaria ser revertida com força pelos ultraliberais de direita.
Mas esse não é um tema por aqui, pois o PT não mexeu uma vírgula em nossa estrutura tributária regressiva, muito dependente dos socialmente injustos impostos indiretos e, no caso dos impostos diretos, muito branda com os que auferem rendimentos de propriedade e muito dura com os que obtêm rendimentos do trabalho.
Cada vez mais dura, aliás, na medida em que se deixou de corrigir as tabelas do Imposto de Renda de acordo com o ritmo de inflação. Os assalariados de todos os níveis de renda tiveram que pagar cada vez mais nesse período.
Considero que não seria fácil para um estrangeiro entender uma coisa dessas: como é possível que um dos países de maior desigualdade social do planeta, que possui uma tributação de rendimentos extremamente regressiva, não tenha apresentado uma vírgula de alteração em sua política tributária durante 14 anos de um partido “de centro-esquerda” (para muitos, “de esquerda”) no poder?
Mas nós, brasileiros, teríamos que nos associar à questão: como é possível? De qualquer forma, o que nos interessa aqui é marcar que, no item fundamental da política tributária, a social-democracia nem passou perto daqui.
Continuemos a perscrutar nossa “prisão à social-democracia”, agora caminhando em direção à política social. Nesse caso, ganha grande destaque o Bolsa Família, programa tornado bastante extenso pelo PT.
Não é nosso objetivo aqui discutir o programa, mas verificar seu ajuste à crítica de Guedes.
Sabe-se que esse tipo de política social, de focalização, foi gerado no interior do Banco Mundial por economistas de extração liberal. Contrapunha-se, enquanto proposta de ação pública, à proposta social-democrata de universalização da intervenção do Estado através da política educacional, de saúde etc.
Foi justamente na gestão do partido que tem a social-democracia no nome que a política de focalização teve seu início, ainda tímido, com a criação, por FHC, das Bolsas Escola e Alimentação e do auxílio-gás.
Inteiramente imbuído da crítica social-democrata, de centro-esquerda, a essa política de focalização, Lula chamou-as de “Bolsa Esmola”. Posteriormente, já na Presidência, depois do fracasso do seu primeiro programa, o Fome Zero, Lula fez a unificação das bolsas num programa único, batizou-o de Bolsa Família, e o incrementou de forma extremamente significativa.
Para nosso propósito aqui, cabe uma única pergunta: onde temos aqui a “prisão social-democrata”? Guedes terá que propor ao presidente Jair Bolsonaro que elimine imediatamente o Bolsa Família, por ser uma das faces dessa prisão? Pelo contrário, o presidente já propôs implementar o 13º salário para os que recebem esse tipo de rendimento.
Continuemos com a política social. Se não encontramos social-democracia no Bolsa Família, talvez a encontremos na política habitacional, com o Minha Casa Minha Vida. De novo, temos a crítica de Lula em sua fase pré-presidencial, quando afirmou, com acuidade, que o pobre, quando comprava casa própria, não podia beber uns goles a mais, pois havia o forte risco de entrar na casa do vizinho.
Pois bem, o Minha Casa Minha Vida levou essa triste característica arquitetônica de nossos programas de moradia popular ao paroxismo, adicionando uma outra triste característica, urbanística, sobretudo nas grandes cidades, ao situar os conjuntos habitacionais a grande distância dos locais de emprego de seus habitantes.
Se a proposta social-democrata implica generalizar qualidade de vida, não vejo como o Minha Casa Minha Vida possa se ajustar a isso. Aliás, nesse caso, é particularmente desanimador verificar como tantos anos de um governo “de centro-esquerda” (para muitos, “de esquerda”) foram inteiramente incapazes de utilizar a reconhecida competência e criatividade de nossa arquitetura.
Seguindo adiante, um dos traços mais fortes da social-democracia é resguardar para o Estado, protegendo-as da interferência mercantil, as esferas da educação e da saúde. É inclusive a generalização da qualidade da educação pública que tem dado grande destaque a alguns dos países mais fortemente social-democratas, com ênfase recente para a Finlândia.
Basta um olhar muito rápido ao que acontece no Brasil nessas duas áreas para constatar que estamos muito longe dessa matriz. Realmente, em saúde e educação, não há que se criticar excesso de social-democracia após 14 anos de PT —muito pelo contrário.
Finalizemos com uma estatística significativa, que recolhemos no jornal O Estado de São Paulo de 9 de dezembro de 2018. Segundo pesquisa realizada pela consultoria Mercer em 601 empresas de 130 países, a diferença de rendimento entre executivos e operários é, em média, de 34 vezes no Brasil. Na Alemanha, país com relevante presença social-democrata, essa diferença é de cinco vezes.
Depois desse dado, somos forçados a concluir que o problema do Brasil não é, como afirma Paulo Guedes, de excesso de social-democracia, mas sim de excesso de falta de social-democracia. Conforme afirmou a escritora argentina Beatriz Sarlo, o que a América Latina necessita é de uma social-democracia séria.
*Benedito Rodrigues de Moraes Neto é professor aposentado do Departamento de Economia da Unesp.
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