Flávio Bolsonaro empregou mãe e mulher de ex-PM do Rio suspeito de chefiar milícia
Raimunda Magalhães está entre os ex-servidores com movimentações bancárias em investigação
Ana Luiza Albuquerque, Italo Nogueira e Júlia Barbon | Folha de S. Paulo
RIO DE JANEIRO- O deputado estadual e senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) empregou até novembro do ano passado em seu gabinete na Assembleia Legislativa a mãe e a mulher de um ex-policial militar suspeito de comandar milícias no Rio de Janeiro.
O ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, 42, está foragido e é um dos 13 alvos de uma operação deflagrada nesta terça-feira (22) pelo Ministério Público para prender suspeitos de chefiar milícias que atuam nas comunidades como de Rio das Pedras e Muzema, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.
A mãe do ex-PM, Raimunda Veras Magalhães, e a mulher dele, Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega, deixaram o gabinete de Flávio, a pedido, no mesmo dia, em 13 de novembro. Elas ocupavam um mesmo cargo e ganhavam R$ 6.490,35 mensais cada. A informação foi antecipada pela TV Globo.
Raimunda é um dos ex-servidores de Flávio citados em relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) que identificou movimentações financeiras atípicas de seu ex-assessor Fabrício Queiroz. Ela repassou R$ 4.600 para a conta de Queiroz.
Queiroz é policial militar aposentado e amigo há mais de 30 anos do presidente Jair Bolsonaro, que o indicou para a vaga no gabinete do filho.
À época da revelação do relatório, em dezembro do ano passado, a reportagem procurou a ex-assessora em endereços relacionados ao seu nome, mas não conseguiu localizá-la.
Raimunda é sócia de um restaurante no Rio Comprido, zona norte do Rio, localizado em frente a uma agência do Itaú na qual foram realizados 18 depósitos em espécie para Queiroz de janeiro de 2016 a janeiro de 2017. No total, o montante depositado chegou a cerca de R$ 92 mil. Nóbrega é sócio de outro restaurante na mesma rua.
Em nota, a assessoria do senador eleito disse que Raimunda foi contratada por indicação de Queiroz, que supervisionava o seu trabalho, e que não pode ser responsabilizado por atos que desconhece.
Já a defesa de Queiroz, que confirmou a indicação, afirmou que “repudia veementemente qualquer tentativa de vincular seu nome a milícia” e que “a divulgação de dados sigilosos obtidos de forma ilegal constitui verdadeira violação aos direitos básicos do cidadão”.
Segundo o advogado Paulo Klein, Queiroz conheceu Nóbrega quando trabalharam juntos no 18° Batalhão da Polícia Militar e não sabia do suposto envolvimento com milícias.
Ainda segundo seu advogado, Queiroz solicitou a nomeação da mulher e da mãe do colega para o gabinete de Flávio Bolsonaro porque a família passava por dificuldades financeiras.
Para a defesa, Nóbrega estava "injustamente preso" em razão de um auto de resistência posteriormente tipificado como homicídio.
Nóbrega foi denunciado pelo Ministério Público acusado de participar da tentativa de assassinato do pecuarista Rogério Mesquita, em razão da disputa pelo espólio do bicheiro Waldomir Paes Garcia, o Maninho. Apenas um envolvido foi condenado no caso —outro policial militar.
A relação de Nóbrega com o jogo do bicho o levou a ser demitido da corporação. Em processo administrativo disciplinar, foi considerado culpado da acusação de atuar como segurança de José Luiz de Barros Lopes, o "Zé Personal", contraventor da máfia dos Caça-Níqueis.
Queiroz é investigado sob suspeita de participar de um esquema de lavagem de dinheiro e ocultação de bens. O Coaf identificou uma movimentação atípica de R$ 1,2 milhão em sua conta bancária em 2016 e 2017.
O alerta se deve não só ao volume, mas também à forma com que as operações eram feitas. No período, Queiroz realizou saques uma vez a cada dois dias em valores elevados, sempre após depósitos de quantias semelhantes.
Flávio Bolsonaro não é formalmente investigado no caso na esfera criminal, mas sim na área cível, que apura improbidade administrativa. A suspeita é de que Queiroz fosse o responsável por recolher parte do salário de servidores com finalidade ainda não esclarecida. O senador eleito nega a prática.
A investigação do caso está suspensa após liminar do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal.
HOMENAGEM
Flávio Bolsonaro homenageou o ex-policial Nóbrega duas vezes na Assembleia do Rio. Em 2003, propôs uma moção de louvor por desenvolver sua função com "dedicação, brilhantismo e galhardia".
"Imbuído de espírito comunitário, o que sempre pautou sua vida profissional, atua no cumprimento do seu dever de policial militar no atendimento ao cidadão", escreveu.
Em 2005, o filho do presidente Jair Bolsonaro concedeu ao ex-policial a Medalha Tiradentes. Na justificativa, entre outras razões, o então deputado estadual escreveu que Nóbrega teve êxito ao prender 12 "marginais" no morro da Coroa, no centro, além de apreender diversos armamentos e 90 trouxinhas de maconha.
Flávio Bolsonaro também já apresentou moção de louvor a outro policial militar alvo da operação desta terça, o major Ronald Paulo Alves Pereira. Apelidado de Maj Ronald ou Tartaruga, ele foi preso preventivamente com outros quatro suspeitos e também é apontado como líder da milícia.
Na nota divulgada à imprensa, o senador eleito disse que sempre atuou na defesa de agentes da segurança pública e que já concedeu "centenas de outras homenagens".
SUPOSTA LIGAÇÃO
Essa não é a primeira vez que o nome de Flávio Bolsonaro aparece ligado a supostos milicianos. Deflagrada em agosto do ano passado, a Operação Quarto Elemento teve como alvo dezenas de policiais suspeitos de participar de uma quadrilha especializada em extorsões.
Entre os presos, estavam os gêmeos Alan e Alex Rodrigues Oliveira, dois PMs que teriam participado da segurança de agendas da campanha de Flávio ao Senado. Eles são irmãos de Valdenice de Oliveira Meliga, assessora da liderança do PSL na Alerj e tesoureira do partido no estado.
À época, o senador eleito negou ao jornal O Estado de S. Paulo que os policiais integrassem sua campanha, enquanto Valdenice disse que os irmãos atuavam como voluntários.
Em foto publicada em sua rede social em outubro de 2017, Flávio aparece em foto com o pai, Valdenice e os gêmeos. Na legenda, escreveu: "Parabéns Alan e Alex pelo aniversário, essa família é nota mil!!!".
O presidente Jair Bolsonaro, quando deputado federal, chegou a proferir em discurso críticas à CPI das Milícias, realizada pela Alerj. Ele defendeu que alguns policiais militares são confundidos com milicianos por organizar a segurança da própria comunidade, mas que não praticam extorsão.
"Como ele ganha R$ 850 por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com milícia ou exploração de 'gatonet', venda de gás ou transporte alternativo. Então, sr. Presidente, não podemos generalizar."
À época da criação da CPI, em 2008, Flávio Bolsonaro também minimizou a gravidade das milícias. "[O policial militar] É muito mal remunerado, precisa buscar outras fontes e vai então fazer segurança privada, vai buscar atividades que muitas vezes são reprováveis pela opinião pública, pela imprensa", disse na Alerj.
O então deputado estadual afirmou que "não raro é constatada" a felicidade dos moradores de comunidades supostamente dominadas por milicianos.
"Não raro é constatada a felicidade dessas pessoas que antes tinham que se submeter à escravidão, a uma imposição hedionda por parte dos traficantes e que agora pelo menos dispõem dessa garantia, desse direito constitucional, que é a segurança pública."
Em 2011, Flávio Bolsonaro também minimizou a morte da juíza PatríciaAcioli, morta com 21 tiros por milicianos quando chegava em casa em Niterói (RJ), em 11 de agosto daquele ano. Para o então deputado estadual, a magistrada era rígida demais com policiais —ela era conhecida por atuar no combate a crimes cometidos por milicianos e agentes policiais.
"Que Deus tenha essa juíza, mas a forma absurda e gratuita com q ela humilhava Policiais nas sessões contribuiu p ter mts inimigos", escreveu à época no Twitter.
MARIELLE
Entre as principais atividades criminosas praticadas pelos milicianos, segundo o Ministério Público, estão a grilagem, construção, venda e locação ilegal de imóveis —motivo pelo qual a vereadora Marielle Franco teria sido morta, conforme afirmou no ano passado o ex-secretário de Segurança Pública general Richard Nunes.
Há a suspeita de que os assassinatos da parlamentar e de seu motorista Anderson Gomes tenham sido cometidos pelo braço armado da milícia que atua na zona oeste do Rio, por receio de que ela atrapalhasse os negócios. O Ministério Público não confirmou a ligação, mas disse que a hipótese não é descartada.
Um dos elementos que sustentam essa tese é que o Chevrolet Cobalt usado pelos matadores de Marielle foi abastecido em um posto de gasolina em Rio das Pedras na véspera do crime. Seis testemunhas também citam Nóbrega no inquérito do caso ainda não concluído, segundo o site The Intercept Brasil.
“Todos esses presos serão ouvidos na expectativa de que possam colaborar em outras investigações. A gente não descarta de nenhuma forma a participação nos crimes da Marielle, mas a gente também não pode afirmar neste momento”, declarou a promotora Simone Sibilio.
No Twitter, o governador Wilson Witzel (PSC) afirmou que a operação prendeu cinco suspeitos de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco e parabenizou o Ministério Público e a Polícia Civil pela ação.
Coordenadora do Gaeco (grupo do Ministério Público de combate ao crime organizado), órgão responsável pela operação, Simone disse que as investigações não têm nenhuma relação com Flávio Bolsonaro.
“Essa operação visou desarticular essa organização criminosa que atua em Rio das Pedras e adjacências”, afirmou. “O deputado não está sendo investigado nesta [apuração]. Essa informação inclusive é nova para nós, de modo que esse envolvimento da mãe e da mulher não têm relevância neste momento.”
Além da exploração ilegal de imóveis, os suspeitos são acusados de atividades como receptação de carga roubada, posse e porte ilegal de arma, extorsão de moradores e comerciantes, ocultação de bens por meio de "laranjas", pagamento de propina a agentes públicos, agiotagem, ligações clandestinas de água e energia e uso da força para intimidação.
As investigações se baseiam em escutas telefônicas e informações recebidas pelo canal Disque Denúncia.
A MILÍCIA
A milícia de Rio das Pedras, segundo as investigações, é antiga, bastante organizada e violenta e possui vários “escritórios” e lideranças. Apenas algumas delas foram presas na operação desta terça.
Ainda não se conseguiu estimar seus lucros, mas só em um dos locais foram achados R$ 50 mil em espécie e mais de 200 folhas de cheque assinadas com altos valores.
A capilaridade da organização envolve até a associação de moradores, onde acredita-se que são consolidadas as compras, vendas e locações ilegais de imóveis e onde moradores são obrigados a contrair empréstimos. Ali também se tem acesso a informações privilegiadas sobre operações policiais.
A organização criminosa costuma invadir terrenos vazios na região, construir (principalmente durante a noite) e vender ou alugar essas casas para a população. Antes mesmo da conclusão das obras, às vezes coloca pessoas para morar ali e dificultar intervenções do poder público.
O Ministério Público também investiga uma série de homicídios que podem ter relação com o grupo. Um deles, que impulsionou essas investigações, foi o de um próprio integrante do bando, Júlio de Araújo, baleado na cabeça em casa em setembro de 2015 como “queima de arquivo”.
Por meio de interceptações telefônicas e relatos do Disque Denúncia, também se descobriu que a quadrilha se mantém por práticas como a extorsão de moradores e comerciantes pelo uso de espaços, receptação de cargas roubadas e pagamento de propina a agentes públicos.
A comunidade de Rio das Pedras é conhecida por ser o berço do que hoje é conhecido como milícia no Rio de Janeiro. Começou a ser ocupada na década de 1960 por migrantes nordestinos e em 2010 já tinha 55 mil habitantes, segundo o IBGE —número considerado subestimado.
Comerciantes pagavam para que grupos paramilitares impedissem a ação de criminosos, mas eles acabaram conquistando poder territorial, financeiro e político.
A operação foi batizada de Os Intocáveis —em referência ao filme americano de 1987 sobre o chefão da máfia italiana, Al Capone— justamente porque a área já foi alvo de várias operações, mas seus líderes não eram investigados.
VEJA PONTOS POLÊMICOS DO CASO QUEIROZ
Cheque de R$ 24 mil à primeira-dama, Michelle
A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, recebeu um cheque de R$ 24 mil de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro. Segundo o presidente Jair Bolsonaro, esse cheque é o pagamento de uma dívida. “Emprestei dinheiro para ele em outras oportunidades. Nessa última agora, ele estava com um problema financeiro e uma dívida que ele tinha comigo se acumulou. Não foram R$ 24 mil, foram R$ 40 mil." O presidente disse ainda que os recursos foram para a conta de Michelle porque ele não tem “tempo de sair”.
Personal trainer e assessora de Bolsonaro
O gabinete do presidente Jair Bolsonaro (PSL) na Câmara dos Deputados atestou frequência total de sua ex-assessora Nathalia Melo de Queiroz, filha de Fabrício Queiroz, mencionado em relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). Nathalia atuava como personal trainer no mesmo período em que trabalhava para Bolsonaro, de dezembro de 2016 a outubro de 2018. A frequência é atestada pelo gabinete ou pelo parlamentar, por meio eletrônico. No período acima, não houve registros de faltas injustificadas ou licenças.
"Faço dinheiro"
"Sou um cara de negócios, faço dinheiro", disse em entrevista o ex-assessor de Flávio Bolsonaro Fabrício Queiroz ao afirmar que parte da movimentação atípica de R$ 1,2 milhão feita por ele vem da compra e venda de carros. Mas o motorista não explicou a razão de ter recebido repasses de outros funcionários, afirmou que só vai falar sobre o assunto no Ministério Público. Porém, ele faltou a convocações para depor alegando problemas de saúde.
Internação e operação de Queiroz no Einstein
Queiroz deu entrada no hospital no dia 30 de dezembro, passou por uma cirurgia no dia 1º e recebeu alta no último dia 8. Sua condição de saúde foi a justificativa para que ele e seus familiares não comparecessem a depoimentos agendados no Ministério Público do Rio. O presidente Jair Bolsonaro diz que emprestou dinheiro para o ex-assessor do filho Flávio Bolsonaro em várias ocasiões porque ele estava com problema financeiro. Quem arcou com os custos desta cirurgia?
Fux x Supremo
Em decisão controversa, o ministro do STF Luiz Fux suspendeu a investigação contra o gabinete de Flávio Bolsonaro, a pedido do filho do presidente. O senador eleito argumentou em seu pedido ao Supremo que, embora não tenha tomado posse, já foi diplomado senador, o que lhe confere foro especial perante o Supremo. Mas em maio do ano passado, o plenário da corte restringiu o foro especial de políticos aos atos cometidos durante o mandato e em razão do cargo. Os casos que não se enquadram nesses critérios —como é, em tese, o relativo a Flávio Bolsonaro— são agora remetidos às instâncias inferiores.
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