- O Globo
Se um profissional da segurança perde a vida quando é surpreendido e reage, o que não acontecerá com o cidadão comum
As novas políticas de segurança no Rio de Janeiro e a iniciativa dos governos federal e estadual estão se configurando a partir de dois elementos centrais.
O primeiro é a retração do Estado. O discurso oficial encoraja as pessoas a se armarem para se protegerem. Assim, o Estado se omite no seu dever de proteger o cidadão, que deve, ele próprio, arcar com esta responsabilidade. O Estado se omite, igualmente, no seu dever de fiscalizar. Um exemplo é o decreto sobre a posse de armas, que exige que a pessoa possua um cofre em alguns casos, mas admite a autodeclaração como comprovação. Entretanto, a difusão das armas não vai melhorar a segurança, como prova o fato de que boa parte dos policiais assassinados no Brasil morre ao tentar resistir a um assalto. Se um profissional da segurança perde a vida quando é surpreendido e reage, o que não acontecerá com o cidadão comum.
Por outro lado, o Estado do Rio desmantela a Secretaria de Segurança com a promessa de “liberar” as polícias de supostas interferências. Ora, é público que as secretarias de Segurança no Brasil apresentam graves limitações na sua capacidade de comandar as polícias. O problema central não tem sido a interferência política, mas a incapacidade de aplicar políticas de segurança pública integradas. O fim da secretaria tornará isto ainda mais difícil e fortalecerá a agenda corporativa dentro das polícias, além de comprometer ainda mais o controle interno e externo da atividade policial.
De fato, o fim da secretaria, a fala de Bolsonaro dizendo que agora no Brasil “mandam os capitães” e as propostas de sequer investigar as mortes cometidas por policiais (como se agora fossem devidamente investigadas) devem soar como música aos ouvidos dos milicianos e dos policiais corruptos.
O segundo ponto é o estímulo à execução sumária de suspeitos. Trata-se de uma pena de morte sem julgamento, ilegal, como bem sabe o grupo político que a promove, que tenta uma modificação legal encarnada na “Lei do Abate”. De qualquer forma, essa proposta de lei é considerada contrária às cláusulas pétreas da Constituição. O termo “abate” é mais uma tentativa de tradução pseudo-jurídica do bordão “bandido bom é bandido morto”, após o uso de outros conceitos estapafúrdios como a “legítima defesa preventiva”, já usada por alguns membros do Judiciário do Rio.
A nova proposta legal do ministro Moro para reduzir ou anular a pena de policiais que cometam “excessos”, especialmente quando concorrerem “medo, surpresa ou violenta emoção”, é outro passo na mesma direção. Desse modo, um policial que testemunhasse a morte de um companheiro poderia alegar “violenta emoção” para poder se vingar de forma legal. Na prática, entre os países que contemplam a pena de morte nas suas legislações, nenhum deles admite que seja aplicada por policiais na rua, muito menos pelo crime de porte ilegal. O que mais espanta na obsessão dos novos líderes políticos por “abater bandidos de fuzil” é o fato de ela se apresentar como novidade. Em 2018, as polícias fluminenses bateram o recorde histórico de suspeitos mortos, com mais de 1.500 vítimas fatais. E todos os estudos mostram a extrema dificuldade de condenar penalmente um policial por homicídio cometido no exercício da função, mesmo quando há provas.
De resto, não será a ameaça de morte que mudará a conduta dos jovens integrantes dos grupos armados ilegais para quem a morte precoce é já uma quase certeza.
Em 2019, ano de mitos, as autoridades querem nos fazer crer que, por algum motivo, a continuidade das velhas políticas gerará novos efeitos.
*Ignacio Cano é professor da Uerj e membro do Laboratório de Análise da Violência
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