Documentário estreia amanhã com depoimentos fortes de ex-delegado assassino de nove vítimas da ditadura. Ao GLOBO, ele diz que, se antes ‘tirava vidas, hoje recupera’ com trabalho evangélico
Fabiano Ristow / Segundo Caderno / O Globo
Cláudio Guerra analisa cada uma das fotografias de vítimas da ditadura que são projetadas diante dele. “Esse foi executado por mim”, diz ele, casualmente, apontando para um rosto. “Já esse aqui foi incinerado por mim.” O olhar, impassível, avança sobre outras imagens. “Esse aqui também.”
É assim, com frieza chocante, que o homem assume ter executado pelo menos nove e queimado o corpo de 12 pessoas ligadas a movimentos de esquerda durante o período em que trabalhou como delegado e agente do SNI (Serviço Nacional de Informações) e do Dops do Espírito Santo, nos anos 1970. O depoimento é registrado no documentário “Pastor Cláudio”, que estreia amanhã após ser exibido em competição no Festival do Rio, em 2017.
Durante pouco mais de uma hora, Guerra relembra, em entrevista a Eduardo Passos, psicólogo e ativista de direitos humanos, os assassinatos e desaparecimentos pelos quais foi responsável. Chega a simular o momento em que deu um tiro à queima-roupa em Nestor Vera, integrante do Partido Comunista Brasileiro. O jornalista estava preso a um pau-de-arara, “mais morto do que vivo”.
“Esse me marcou. Ele estava ajoelhado. Atirei em sua cabeça. Foi um gesto de misericórdia”, descreve Guerra. Éa única vez durante o documentário que ele admite ter sentido pena. As outras execuções, afirma, foram “atos impessoais”. Estava, afinal, apenas “cumprindo ordens”.
Cláudio Guerra falou à Comissão da Verdade, em 2014, e deu depoimentos para o livro “Memórias de uma guerra suja”, publicado em 2012 por Rogério Medeiros e Marcelo Netto. Mas vê-lo no cinema é diferente, argumenta a diretora Beth Formaggini, que filmou a entrevista durante quatro horas, em 2015.
—Palavras faladas têm peso porque você vê as frestas entre elas. A forma com que ele fala evidencia as violações cometidas. Causou incômodo em toda a equipe. É a verdadeira banalidade do mal—define a cineasta, citando a expressão criada pela teórica alemã Hannah Arendt.
Inicialmente um oficial de Justiça de Minas, Guerra conquistou a confiança dos militares porque “odiava o comunismo”. Pelas suas contas, executou “uma ou duas pessoas no Rio”. Em São Paulo, foram três. Uma delas estava parada no ponto de ônibus. Houve também vítimas em Recife e Belo Horizonte. Não sabia o nome de ninguém. O objetivo, diz, era dificultar a elucidação dos crimes em caso de eventual investigação.
As ordens jamais eram documentadas. Chegavam de forma oral, por meio do seu chefe direto, o militar Freddie Perdigão Pereira, integrante da Casa da Morte, em Petrópolis, um centro clandestino de tortura e assassinato. Os corpos chegavam de lá até a Usina Cambahyba, em Campo dos Goytacazes, embalados num saco plástico preto, onde eram incinerados. Antes disso, no entanto, Guerra abria os sacos e olhava para as vítimas, só “por curiosidade”. Algumas chegavam com membros faltando.
— Precisamos lembrar que o Brasil ainda é um país terrivelmente cruel do ponto de vista dos direitos humanos. O próprio Cláudio diz que os financiadores do golpe de 1964 estão na ativa. Se não encararmos essas questões, corremos o risco de voltar àqueles tempos —alerta Beth.
O nome do longa se refere ao fato de que Guerra, hoje, é bispo evangélico. No início da projeção, o entrevistado pede para ser chamado de pastor, função da qual diz se orgulhar. Em seguida, levanta-se da cadeira e retorna com uma grande Bíblia, que mantém sobre o colo durante toda a conversa com Eduardo Passos. O ato, aparentemente banal, provocou ansiedade em quem estava no estúdio, revela o psicólogo:
— Quando desmontamos o sete o Cláudio foi embora, confessei à equipe ter sentido medo de haver uma arma dentro da Bíblia. Para a minha surpresa, todos admitiram ter pensado a mesma coisa —afirma Passos.
Na análise do psicólogo, Guerras e coloca como vítima. O ex-delegado, por exemplo, afirmas e sentir perseguido até por parte da direita, que o considera um traidor. Diz ainda provocar medo em pessoas que não sabem que ele mudou “para melhor”. Em entrevista ao GLOBO, Cláudio Guerra evitou falarem remorso ou arrependimento.
— Eu não faria hoje o que fiz no passado. Fiz porque eu era um soldado. Obedecia ordens. E por razão ideológica. Eu realmente acreditava que o comunismo era uma ameaça. Sinto tristeza de ter participado. Nosso país não merece nada disso. Não merece guerra —afirma o pastor, que nega ter dado os depoimentos “pelos holofotes”, e sim para que seus erros sirvam de exemplo para a geração atual. —Se antes eu tirava vidas, hoje eu recupero. Faço trabalho social em presídios e igrejas. Considero-me útil para a sociedade.
Perguntado se ele vê o comunismo como uma ameaça novamente em 2019, responde apenas que encara todos os governos, “de direita ou esquerda”, como uma decisão de Deus que precisa ser respeitada:
— A Bíblia diz que tenho que ser sujeito à autoridade, no caso, Deus. Beth questiona a Lei da Anistia de 1979, que beneficiou Cláudio Guerra.
— Desaparecimento político é um crime eterno. Uma mãe que não enterrou o filho continua esperando-o entrar pela porta. Pessoas como o Cláudio deveriam estar presas ou no mínimo ser julgadas.
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