Marina Gonçalves / O Globo
RIO — Mais que uma guinada à direita, os resultados do mais recente ciclo eleitoral na América Latina são fruto da atual conjuntura econômica, da rejeição do eleitor à corrupção e de uma insatisfação crescente com as democracias, acredita o analista Carlos Malamud, professor da Universidade Nacional de Educação à Distância e analista para América Latina do Real Instituto Elcano, da Espanha . Para o historiador, que esteve na semana passada no Rio para uma palestra na Fundação Getúlio Vargas, ainda há uma coexistência entre governos de esquerda e direita, e inclusive de extrema direita na região. Embora avalie que o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, tem carisma, ele não o vê como líder regional. Em relação à Venezuela , Malamud afirma que a retirada da imunidade parlamentar do líder opositor Juan Guaidó, na semana passada, evidencia a debilidade do governo de Nicolás Maduro.
O senhor acredita que ele poderá ser preso?
Prender Guaidó não é um cenário improvável. Evidentemente estão mobilizando todos os recursos institucionais para limitar a margem de manobra de Guaidó. Primeiro, o inabilitaram; depois retiraram sua imunidade parlamentar. Por isso, um cenário em que ele termine preso não é descartado. Mas em condições normais, ou seja, se isso tivesse acontecido em 2017, ele já estaria preso. E o que isso mostra não é a força, mas a debilidade do regime. Com nenhum outro personagem, nem com Henrique Capriles, nem Leopoldo López, nem com Antonio Ledezma, tiveram tanto trabalho ou demoraram tanto para resolver uma situação como essa. Nos últimos três meses a conjuntura venezuelana evoluiu de uma maneira impensável, por isso eu não descartaria que ele termine na prisão. De fato, a captura e a prisão de seu chefe de gabinete vai na mesma direção. Ou seja, aos poucos vão tirando sua margem de manobra e limitando suas opções.
O governo Maduro está enfraquecido?
Cada dia que Guaidó está na rua, livre, significa que o regime tem um problema que não sabe bem como resolver. Há setores duros, que querem eliminá-lo fisicamente, e outros que veem que isso agudizaria a pressão com parte da comunidade internacional, sobretudo dos Estados Unidos. Também começa a pesar o fato de alguns personagens ligados ao regime estarem começando a sentir na própria pele as sanções, com fundos congelados, com seus parentes no estrangeiro sem poder receber dinheiro.
A crise na Venezuela pode se tornar uma crise global?
Até o momento é uma crise regional. É verdade que estão presentes múltiplos atores extrarregionais: de um lado Estados Unidos e União Europeia; de outro, Rússia, China e também Cuba, Irã, Turquia. Mas não acredito que degenere em um conflito mundial. Primeiro porque a China não está interessada em fazer disto um problema internacional em que tenha que enfrentar os Estados Unidos, porque tem problemas mais sérios e decisivos com o governo americano que a Venezuela ou a América Latina. Para Rússia, é preciso destacar que a Venezuela não é a Síria. Na Síria, a Rússia tem uma base naval no Mediterrâneo que lhe permite aprofundar sua estratégia regional, e na Venezuela não, ainda que estejam negociando uma base naval. Em segundo lugar, porque para a Rússia não é o mesmo manter um esforço logístico no meio do conflito sírio do que fazer isso na Venezuela, que está muito mais distante. Só o custo de manter uma ponte aérea entre Moscou e Caracas é muito superior que entre Moscou e Damasco.
As mudanças de governo na América Latina nos últimos anos evidenciam uma guinada política na região?
A região está mudando. Entre outubro de 2017 e dezembro de 2019, 14 eleições presidenciais terão sido realizadas na região. Ainda faltam quatro ou cinco. O que mudou foi a conjuntura, em parte porque o superciclo das commodities acabou, e isso está produzindo mudanças importantes. Além disso, há outros fatores como a emergência da corrupção como um fenômeno cada vez mais determinante na política e uma crescente insegurança dos cidadãos; a reversão das novas classes médias, que haviam emergido no período anterior, como consequência da deterioração da situação econômica; e uma crescente insatisfação com as democracias e uma rejeição eleitoral. Por tudo isso, não digo que estamos diante de um novo ciclo generalizado de direita.
Como se classificar esse novo ciclo então?
Para começar, ainda temos alguns governos de esquerda e centro-esquerda, caso da Costa Rica, com Carlos Alvarado, e do México, com a eleição de López Obrador. Ainda estão pendentes algumas eleições importantes na região, com a possível reeleição de Evo Morales na Bolívia e a possível revalidação da Frente Ampla no Uruguai, ainda que tenha mais dificuldades que no passado. Na Argentina, Mauricio Macri pode triunfar ou ser derrotado. Lá a pergunta é: Cristina Kirchner poderia voltar? Estamos então em uma situação na qual o que vemos é uma coexistência entre governos de esquerda, de centro-esquerda, de direita, de centro-direita, inclusive algum de extrema direita, que é o mais próximo de vocês.
Como o senhor vê a criação do Prosul? Há uma aproximação dos governos de direita com os Estados Unidos?
O Prosul, no momento, não deixa de ser uma piada. A menos que amanhã ou depois aconteça algo concreto, eu vejo como uma piada. Sobre os Estados Unidos, o governo resolveu tomar partido na crise venezuelana, mas não há um interesse genuíno pela América Latina. De fato, Donald Trump não esteve na Cúpula das Américas, em Lima, e demorou a nomear o responsável pela América Latina no Departamento de Estado. Com exceção do México com o tema do muro, a América Latina não importa quase nada para Trump, que tem os "Estados Unidos primeiro" como sua máxima expressão.
E por que o interesse dele na Venezuela?
Porque, ao perder o controle da Câmara, que passou ao Partido Democrata, sua invenção do muro vem abaixo. Por isso precisa de um discurso para conseguir continuar mobilizando sua base mais radical, e criticar as ditaduras de Venezuela e Cuba faz parte desse discurso. As eleições do ano que vem se aproximam, e para conseguir sua reeleição precisa conquistar a Flórida, um swing state [estados que ora votam nos democratas, ora nos republicanos], onde os eleitores cubano-americanos se sentem reconfortados ou identificados com esse discurso, que favorece Trump.
A reeleição de Evo Morales poderia levar à "madurização" da Bolívia?
O caso boliviano é muito diferente do venezuelano. Da perspectiva macroeconômica houve da parte do governo um maior respeito das regras do mercado e das instituições. Outra coisa é que Evo Morales é sim o típico caudilho bolivariano, que adotou muito dos tiques do bolivarianismo da região, como por exemplo, a reforma da Constituição para introduzir a reeleição. Além disso, ele tem um estilo muito personalista, que se vê como insubstituível. Ele leva quase 15 anos no poder, e a política significa também alternância, além do fato de que a perpetuação n poder favorece a corrupção. Há um cansaço, não apenas na classe média, mas em setores populares e em uma parte importante do setor indígena, que antes era um aliado. Isso faz com que as chances eleitorais de um personagem como Carlos Mesa cresçam.
Jair Bolsonaro tem um discurso mais conservador, a ponto de defender a ditadura e dizer que nazismo é um fenômeno de esquerda. Ele pode ser um líder na região?
Sim e não. Hugo Chávez foi um líder regional porque tinha muito carisma, mas também a convicção de que poderia exercer essa liderança e tinha um projeto e dinheiro para investir nesse projeto. Bolsonaro tem carisma, mas o problema é: ele tem um projeto? E tem o dinheiro para investir nesse projeto? A dúvida gira em torno de se, seguindo as orientações de Steve Bannon (ex-estrategista de Trump), Bolsonaro quer instituir uma espécie de internacional de extrema direita na América Latina. A questão é essa: em que medida Bolsonaro quer se converter em um articulador da extrema direita? Um dos problemas que teve Chávez quando exerceu sua liderança é que muitos não queriam que ele fosse o líder. Se as pessoas não te seguem, você não é um líder. Há presidentes que não compartilham da postura de Bolsonaro, caso de Macri. Se Macri dissesse "por que não celebramos o 24 de março?" haveria uma guerra civil da Argentina. O próprio chileno Sebastián Piñera sentiu incômodo quando Bolsonaro reivindicou o ex-ditador Augusto Pinochet. A não ser que haja uma mudança no estilo do governo, as opções de Bolsonaro de se converter em um líder regional são limitadas. Outra possibilidade é que Bolsonaro aposte numa liderança regional do Brasil, o que de forma sistemática todos os governos brasileiros não fizeram, porque as lideranças têm custos.
Nem Lula?
Lula queria jogar nas Grandes Ligas. Mais que na América Latina, pensava no jogo mundial. Ele era reconhecido pelos seus pares, mas não tinha nenhum inconveniente em deixar o protagonismo a Hugo Chávez, o que um líder não faria. Por exemplo, quando na cúpula sul-americana sobre energia Chávez quis mudar o nome da então Comunidade Sul-Americana de Nações para Unasul, o conseguiu em cinco minutos, e Lula não se opôs. Nem sequer com Lula emergiu essa ideia de o Brasil ser um líder real concreto da América Latina.
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