- O Globo
Ser considerado ‘invasor’ e alvo declarado de extremistas na era Trump tornou-se o novo normal para 57,5 milhões de pessoas
Diferentemente do que ocorre no Brasil, em El Salvador e Guatemala o Día Del Padre é comemorado em 17 de junho. Nos Estados Unidos festeja-se a data no terceiro domingo do mesmo mês, e mundo afora o calendário aponta para outras 17 variantes. Esta semana, portanto, nada de especial envolvendo pais e filhos estava programado em lares latinos do Mississipi. Exceto pelo ICE, o Serviço de Imigração e Controle de Alfândegas, encarregado de reprimir a migração ilegal no país.
No meio da tarde de quarta-feira, 600 agentes fizeram uma razziarelâmpago em cinco pequenas cidades daquele estado sulista dependente da agropecuária. Pinçaram 680 pessoas durante o trabalho em fábricas de processamento de alimentos e os levaram de mãos atadas nas costas, para averiguação — muitos ainda com toucas higiênicas na cabeça. Na cerca de arame de uma dessas empresas, a Koch Foods Inc da minúscula Morton (3,5 mil habitantes), uma placa de “Contrata-se” resumia parte relevante da equação. A Koch é uma das maiores produtoras de carne de aves do país, com 13 mil empregados em seis estados.
A ação ocorreu na mesma tarde em que o presidente Donald Trump visitava sobreviventes das chacinas em Dayton e Ohio, que haviam deixado um rastro de horror nacional e desencadeado pânico na população latina. Coincidência infeliz. Ainda assim, foi considerada um êxito absoluto por Matthew Albence, diretor em exercício do ICE. “A operação seguiu à perfeição o manual de segurança e proteção aos agentes”, comemorou, ressaltando o fator surpresa que faltou em episódios anteriores, quando tuítes do próprio presidente embaralhavam os trabalhos.
Magdalena Gómez Gregorio, de 11 anos e origem salvadorenha, terá lembrança diferente da mesma quarta-feira 7 de agosto de 2019. Era o primeiro dia do novo ano escolar no Hemisfério Norte. À saída, tinham lhe roubado o pai. Um vídeo quase obsceno, por cruel, a mostra suplicando entre soluços para que lhe devolvam esse pai. Usa o inglês, idioma que lhe é mais natural em momento de tamanho terror (“I need my dad and mommy... He didn’t do anything...”). De uma hora para outra, cerca de 200 crianças abandonadas em escolas ou creches sentiram-se órfãs de pai ou mãe. Outras encontraram a casa vazia ou sequer conseguiram nela entrar, por falta de chave.
Por não representarem perigo à nação nem se enquadrarem no perfil genérico de “criminosos” criado por Trump para migrantes hispânicos, metade dos detidos foi liberada no dia seguinte. Uns tantos foram selecionados para deportação. Outros deverão comparecer perante um juiz de imigração em data futura, mas dificilmente o farão. Assim como Magdalena não deve querer voltar à sala de aula por não saber se na saída voltará a estar órfã. Também não é difícil imaginar a agonia dos adultos no entorno da menina — mesmo os de cidadania americana legal — para retomar o trabalho, a vida. Apesar da rede de apoio que sempre se forma em circunstâncias extremas e ajuda a humanidade a seguir em frente, ser considerado “invasor” e alvo declarado de extremistas na era Trump tornou-se o novo normal para 57,5 milhões de pessoas — os 18% da população americana de origem latina.
É de se prever também que os 11 milhões de latinos imigrados ilegalmente no país, que já se utilizam de documentos falsos, de registros de cidadãos já mortos ou da identidade de filhos nascidos nos Estados Unidos para obter empregos, agora desçam um patamar mais abaixo na clandestinidade. Para Ali Noorani, diretor de uma entidade de estudos da imigração, a sociedade americana perde seus vizinhos, a igreja perde seus fiéis, a economia afasta essa importante força de trabalho. “Não seremos um país mais seguro quando essas comunidades forem empurradas para cada vez mais longe do sistema”, explicou ao “New York Times”.
Mas chegará o dia em que essas crianças à deriva num mundo adulto que pode lhes roubar pai ou mãe haverão de ser ouvidas. Assim como estão sendo ouvidos agora os filhos e netos do nefando programa Empregos Americanos para Americanos de Verdade, instituído pelo presidente Herbert Hoover no auge da Grande Depressão dos anos 1930.
Com a nação de 2019 em tumulto e desconstrução, Donald Trump optou por passar o fim de semana nos Hamptons, junto a doadores de sua campanha pela reeleição em 2020. Num dos jantares, o preço de uma mesa com direito a foto e breve contato com o presidente custa 250 mil dólares. Em seguida, Trump dará inicio a férias em um de seus campos de golfe. O pai de seu pai, que imigrara da Alemanha aos 16 anos como aprendiz de barbeiro e apenas uma maletinha, ficaria orgulhoso. Ou não.
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