- O Globo
Meu pai tem 93 anos e é um homem feliz. Ele bebe de vez em quando, fuma escondido e sai para dançar sempre que pode. Ele também mente um pouquinho. Mas são mentirinhas bobas, para proteger alguém, para não se aborrecer e não aborrecer ninguém. Outro dia ele caiu e quebrou duas costelas. Perguntei como foi aquilo. Meu pai, que mora em Belo Horizonte, me disse pelo telefone que caiu na sala da sua casa, que não foi nada de mais. Como assim, nada de mais? Fui a BH cuidar do assunto, teria que tirar tapetes, colocar corrimãos, tornar o ambiente mais seguro. Quando cheguei, soube por um sobrinho que ele não caiu na sala, mas num salão de dança.
Pois é. Seu Seleme frequenta três locais diferentes na cidade para dançar. Nas quintas, ele vai ao Engenho de Minas, onde caiu e quebrou as duas costelas. Nos fins de semana, prefere o Tip Top. E nas segundas, dança no Barbazul, o seu preferido. Certa noite, no Barbazul, um marido ciumento criou uma cena deplorável porque meu pai tirou sua mulher para dançar. O marido, de pouco mais de 40 anos, chegou a dar um tapa no dançarino nonagenário. Os garçons, claro, seguraram o homem exaltado e o expulsaram do lugar. Meu pai disse que o agressor errou o tapa. Mentira, ele não queria preocupar ninguém, nem provocar qualquer sentimento de dó.
Uma noite no Rio Scenarium, na Lapa, ele foi a uma mesa onde estavam sentadas duas mulheres. Muito elegante, dirigiu-se à mais nova e solicitou: “A senhorita me daria o prazer dessa dança?”. A moça olhou para o meu pai, olhou para a outra mulher da mesa e respondeu: “Vai depender da minha companheira”. A companheira também olhou para ele, pensou um pouco e decretou: “Não, não vai rolar”. Meu pai agradeceu, sorridente, voltou para a mesa ao lado onde eu o aguardava e ouvira todo o diálogo, e me disse: “Ela não pode dançar, torceu o joelho”.
Pais normalmente contam pequenas mentiras, quase sempre para poupar seus filhos. Mas o pai de Flávio, Carlos e Eduardo mente grande. As mentiras de Jair Bolsonaro são de outra natureza e têm objetivos diversos. E, mais grave, ele mente no atacado e mente para todo o país. Não precisava. Mas o que parece um impulso é maior do que ele. É estratégico. Desde sua posse, o presidente do Brasil já foi pego mentindo diversas vezes.
Bolsonaro já distorceu verdades sobre armas, meio ambiente, drogas, tortura, agrotóxicos, educação e muito mais. Os institutos de checagem se cansam de desmentir o presidente. Bolsonaro também estimula fake news. É da sua natureza trabalhar com dados falsos para confundir e escamotear fatos verídicos que não lhe interessam. É assim que ele faz política.
Algumas das peças que prega são tão disparatadas que causam vergonha alheia. Como dizer a correspondentes estrangeiros, por exemplo, que não há fome no Brasil. Ou afirmar que o nosso é um dos países que menos usam agrotóxicos no mundo. E outras encabulam até mesmo seus aliados, como afirmar que o pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, foi morto por companheiros de militância, ou que a jornalista Míriam Leitão pegou em armas e inventou ter sido torturada. Francamente, presidente.
O pior é que muita gente acredita nas mentiras de Jair Bolsonaro. São pessoas deliberadamente mal informadas, que não procuram veículos profissionais para esclarecer dúvidas ou buscar informações corretas, e subsistem com o que recolhem nas bolhas que criaram para si mesmas nas redes sociais. Para essas pessoas, fantasias acabam virando verdade. E são passadas adiante num círculo vicioso e enfumaçado que turva a visão. É por aí que a mentira oficial trafega.
Nenhum comentário:
Postar um comentário