- Folha de S. Paulo
Livro de cabeceira de Angela Merkel nos diz como lutar contra autoritarismos de hoje
“Baseando-se na indiferença à verdade, falta de vergonha e autoconfiança hiperinflacionada, o demagogo tagarela entra em uma terra de fantasia —'Quando eu for rei, como rei serei'— e ele convida seus ouvintes a entrar nessa mesma terra da fantasia com ele. Nela, dois e dois não são quatro.”
Não, esta não é uma análise política dos tempos atuais, tampouco uma descrição de governos populistas como são os de Maduro, Bolsonaro e Trump. Ao menos, não diretamente.
Este é um trecho do livro “Tirano: Shakespeare sobre Política” (ainda sem tradução ao português) de Stephen Greenblatt, professor de Harvard e um dos maiores especialistas do mundo no autor inglês.
Nesta semana, Angela Merkel, chanceler alemã de centro-direita, foi fotografada lendo este livro em suas férias na Itália. Pude ler este livro em uma tacada só durante um voo longo há alguns meses.
Como William Shakespeare, Greenblatt utiliza do artifício de falar do passado como forma de compreender o presente.
A fim de evitar possíveis inimizades entre o círculo político de sua época, Shakespeare garantia ao menos um século de distância entre as histórias que contava em suas peças e o seu tempo presente.
Mesmo não sendo a História (ou o teatro) uma bula de remédio, como nos alerta a historiadora Lilia Schwarcz em seu mais recente livro, Shakespeare, pelas lentes de Greenblatt, nos ajuda a navegar os tempos sombrios atuais.
Como pensa um tirano?
Com base em "Ricardo 3º" e "Macbeth", Greenblatt disseca a personalidade do tirano: “a autoestima ilimitada, a violação da lei, o prazer em infligir dor, o desejo compulsivo de dominar".
"Ele é patologicamente narcisista e supremamente arrogante. (...) Ele espera lealdade absoluta, mas ele é incapaz de gratidão. Os sentimentos dos outros não significam nada para ele. Ele não tem graça natural, nem senso de humanidade compartilhada, nem decência,” escreve Greenblatt.
O que alimenta a personalidade tirânica, portanto, é arrogância de se saber obedecido, combinada com o sadismo de presenciar o sofrimento alheio. É eleger um herói nacional que torturou mulheres grávidas.
É colocar crianças migrantes em jaulas na fronteira da maior potência mundial. É jogar tanques do Exército contra manifestantes. E fazê-lo com a arrogância de se achar certo.
Se são sádicos, por que tiranos nos atraem? Shakespeare nos diz o porquê. Em parte, por seu apelo populista. Na peça "Henrique 4º" (Parte 2), Shakespeare, para Greenblatt, explica alguns elementos dos populismos de hoje.
Primeiro, seu desprezo pelas regras do jogo político. “A primeira coisa a fazer, matemos todos os advogados”, escreve Shakespeare na voz de um membro da multidão.
“Minha boca vai ser, daqui em diante, o parlamento da Inglaterra”, diz outro rebelde. Segundo, por seu descaso pela educação. O crime mais grave de Saye foi promover uma cidadania culta – de pessoas que lessem livros, escreve Greenblatt.
Lembro aqui de Dostoievsky, em “Os Demônios”, onde se lê que o passo fundamental para o autoritarismo seria “rebaixar o nível da educação, das ciências e do talento. (...) A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas.” Não há espaço para ciência, livros ou sequer verdade em uma sociedade tirânica.
Há diversos tipos de pessoas que, de um jeito ou outro, permitem a tirania.
De um lado, os que se mantêm em silêncio. Os que se abstêm. “Não discutirei o que trás isto se esconde. Ficarei eu inocente do intento.”, diz Brakenbury diante de uma injustiça em "Ricardo 3º".
De outro, aqueles que se sentem os donos de toda a verdade. “A verdade aparece nua ao meu lado”, diz o Duque de York em Henrique 6º. “O que importava era a sua falta de vontade de fazer compromissos, a certeza beligerante sentida por cada um de que sua posição, e apenas sua, era a única possível.”, escreve Greenblatt.
Quem nos salvará? Greenblatt nos lembra com base em "Macbeth" que em tiranias há aqueles que, habitando o círculo do poder, percebem a loucura de seu governante.
E, mais importante, há nós, cidadãos comuns. Nós, 70% que não somos a favor de investidas autoritárias. Para Greenblatt, “Shakespeare acreditava que os tiranos acabariam fracassando, derrubados por sua própria maldade e por um espírito popular de humanidade que poderia ser suprimido, mas nunca completamente extinto.”
Shakespeare nunca deixou de notar “as pessoas que permaneciam caladas quando eram exortadas a gritarem seu apoio ao tirano, ou ao criado que tentava impedir seu mestre de torturar um prisioneiro, ou ao cidadão faminto que exigia justiça econômica”, escreve Greenblatt.
Aqui mora nossa esperança contra tiranos. Em nós mesmos.
*Thiago Amparo, advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.
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