- O Globo
Os destinos de Ketellen, Davi e Francisco são parte do retrato atual do Brasil. Este retrato pode melhorar a passos lentos
Duas notícias se cruzaram nesta segunda semana de novembro, Mês da Consciência Negra no Brasil. Uma é de abrangência nacional e inédita — segundo o estudo “Desigualdades sociais por cor ou raça”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estudantes negros passaram a ser maioria no ensino superior público do país em 2018. Alvíssaras.
A segunda notícia é local e recorrente — menina atingida na rua por bala perdida morre no Rio. Ketellen Gomes estava a caminho da escola quando levou o tiro. Aos 5 anos de idade, cursava o pré e talvez, muito talvez, viria se somar aos 50,3% negros (pretos e pardos) que hoje compõem a maioria dos estudantes em universidades públicas. Ou, quem sabe, se tornaria uma das alunas por trás da estatística de 46,6% negros em faculdades privadas.
Não deu.
Junto à mãe de bicicleta, estava quase chegando na escola não longe de casa, no bairro do Realengo, Zona Oeste, quando, num carro branco, três homens de touca ninja dispararam vários tiros. Embora não dirigidos à menina, um acertou sua perna e foi fatal. Segundo relato de uma tia-avó de Ketellen, um dos atiradores, ao perceber que fizera uma vítima “colateral”, teria feito um aceno de desculpas antes de sumir naquela paisagem de morte. Soube-se depois que os matadores eram milicianos em missão específica: executar um jovem do bairro envolvido com o tráfico para ampliar o raio de atuação criminosa da milícia na região. E assim foi fuzilado Davi Gabriel Martins do Nascimento, 17 anos, negro, de escolaridade desconhecida. Davi se enquadra em outra estatística do estudo sobre desigualdades do IBGE, a da taxa de homicídio de jovens pretos ou pardos, do sexo masculino, entre 15 e 29 anos de idade. São185 homicídios desses jovens para cada cem mil habitantes, contra a média nacional de 43,4 negros assassinados, de todas as faixas etárias. Entre a população branca, o indicador se manteve estável na série histórica de 2012 a 2017: 16 homicídios para cada cem mil habitantes.
Corte para o bairro de Vicente de Carvalho, na Zona Norte, distante uns 20 km de Realengo. Ali, enquanto o noticiário da manhã ainda detalhava o luto pela morte da menina Ketellen, Francisco Paulo da Silva se reunia para uma oração com colegas da Comlurb, onde trabalhava. Segundo seu chefe na gerência de Irajá, o gari era religioso e gostava de cantar hinos enquanto trabalhava. Foi atingido por uma bala perdida enquanto fazia trabalho de capina. Assim, do nada. Como na estrofe de “Convoque seu Buda” do cantor e compositor Criolo, que diz: “Sonho em corrosão, migalhas são/ Como assim bala perdida? /O corpo caiu no chão!”
Francisco era negro e tinha conseguido chegar aos 61 anos — 21 como gari. Driblara o terreno racial minado que condena tantos jovens a serem assassinados no país. A Comlurb acabou sendo sua faculdade de vida. À sua época, a Lei Federal de Cotas, sancionada por Dilma Rousseff em 2012, ainda era considerada ficção ou importação do estrangeiro. E caso tivesse tido a oportunidade de ser admitido numa universidade, Francisco talvez estivesse entre os 61,8% de estudantes negros que, segundo o IBGE, interrompem ou abandonam o curso por ter de trabalhar ou procurar emprego. Ou ainda, de acordo com o estudo citado, teria um rendimento médio mensal 42,5% inferior ao recebido pelo trabalhador de cor branca.
Os destinos de Ketellen, Davi e Francisco são parte do retrato atual do Brasil. Este retrato pode melhorar a passos lentos, como a teimosa taxa de analfabetismo adulto, que baixou apenas 0,7% em seis anos. Ou pode dar saltos rumo a algum futuro, impulsionado pelo sistema de cotas que reserva vagas a determinados grupos populacionais, somado a financiamentos estudantis confiáveis e todo um leque de políticas públicas. Francisco viveu o quanto pôde num Brasil retrógrado. O jovem Davi é a chaga maior do presente — tanto na curta vida que levou como nas circunstâncias da morte. E Ketellen não teve tempo sequer de saber se teria futuro. Quase todas as fotos da menina postadas pela família a mostram vestindo a camiseta do uniforme escolar. A Escola Municipal Stella Guerra Duval não possui biblioteca nem banda larga nos 14 computadores coletivos. Mas tem professores com levas de crianças para inserir na vida e no Brazilzão.
Consciência negra é tão mais do que o mês de novembro em foco!
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