Pendor autoritário – Editorial | Folha de S. Paulo
Ao ameaçar usar LSN contra Lula, Bolsonaro mina confiança nas instituições
Jair Bolsonaro (PSL) fez mais uma acintosa exibição de seu pendor autoritário ao reagir às primeiras manifestações feitas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após sair da cadeia.
Atacado pelo líder petista, que condenou sua política econômica e disse que ele governa para milicianos em vez de se preocupar com o país, o chefe do Executivo ameaçou recorrer à Lei de Segurança Nacional para conter o antecessor.
“Está aí para ser usada”, disse Bolsonaro ao site O Antagonista. “Alguns acham que os pronunciamentos, as falas desse elemento, que por ora está solto, infringem a lei”.
O presidente sugeriu também que as ações de Lula deveriam ser vistas como parte de um esforço da esquerda para retomar o poder na América Latina, ao lado dos protestos contra o governo no Chile e da volta dos peronistas na Argentina.
Publicada nos estertores da ditadura militar, a Lei de Segurança Nacional define penas para 21 crimes, incluindo incitação à subversão da ordem política, emprego de violência contra o regime democrático e ofensas à reputação do presidente e de outras autoridades.
A lei não foi revista após a redemocratização, mas certamente não constitui o instrumento adequado para um governante lidar com seus adversários em tempos de paz, com instituições democráticas em pleno funcionamento.
Ainda assim, seria um equívoco tratar as declarações de Bolsonaro como apenas mais um de seus arroubos inconsequentes, uma nova expressão da nostalgia que ele nutre pelo período autoritário.
As frequentes manifestações do presidente sobre o assunto, incluindo a aviltante defesa que costuma fazer das violências praticadas pelos militares contra opositores do regime, têm um efeito pernicioso e mais profundo.
Ao alimentar o saudosismo, Bolsonaro tenta intimidar seus adversários e minar a confiança da sociedade na capacidade das instituições democráticas de enfrentar os desafios do presente.
Não é outro o sentido da recente diatribe de um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro (SP), que citou o famigerado Ato Institucional nº 5 da ditadura como o tipo de resposta que uma onda de protestos contra seu pai mereceria.
O mesmo espírito preside manifestações como as do general Eduardo Villas Bôas e do vice-presidente Hamilton Mourão, que expressaram incômodo com a mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre prisões após condenação em segunda instância.
Felizmente, tais pronunciamentos têm sido rechaçados por líderes do Congresso e integrantes do STF —sinal de que as instituições capazes de conter o arbítrio do Executivo estão atentas e preparadas.
Perpetuação no poder é doença sul-americana – Editorial | O Globo
Evo Morales entra na lista dos que sucumbiram ao sonho da eternização no comando
A renúncia forçada de Evo Morales da presidência da Bolívia não esconde características de golpe, mas é preciso colocar a crise no seu amplo contexto, incluindo o continente sul-americano. Que, assim como o Brasil, não é para amadores. Um aspecto inconfundível de qualquer regime autoritário é a inexistência de alternância no poder e eleições. Mas nem isso é capaz de certificar uma democracia, principalmente na região.
A ditadura militar brasileira, instaurada no golpe de 1964, criou um sistema de troca de generais no Planalto, escolhidos, inicialmente, por um “dedazo” do alto comando das Forças Armadas e depois ungidos num simulacro de ato democrático, na votação indireta no Congresso. Devidamente depurado por cassações e contido por uma série de legislações repressoras.
O caudilho Hugo Chávez aperfeiçoou a fórmula. Logo após ganhar sua primeira eleição para presidente da Venezuela, em 1998, conseguiu da Justiça permissão para fazer um plebiscito sobre uma Constituinte. Ganhou a consulta, porque continuava com grande apoio popular, controlou a assembleia que faria a nova Constituição e redigiu a Carta como quis. Destruiu a Venezuela, tarefa que está sendo completada pelo pupilo Nicolás Maduro. Mesmo com eleições formalmente diretas, marca da democracia. Ou seja, eleições diretas e rotatividade no poder, vê-se, não são garantias firmes e definitivas de democracia. Faltam instituições republicanas fortes.
O boliviano Evo Morales ganhou a primeira eleição em 2006, ficou 13 anos no poder, um tempo além do que seria cabível. Copiou Lula, que assumiu em 2002 cumprindo o primeiro mandato sem desrespeitar leis básicas da economia, e estabilizou o país. O Brasil escapou da recessão, geraram-se empregos — ajudado por feliz conjuntura internacional. Lula se reelegeu e voltou a aderir ao antigo pensamento nacional-populista do PT, levando o país à grave crise de 2014 a 2016, já com Dilma no Planalto. Crise da qual o país ainda não conseguiu sair por inteiro.
Evo foi da mesma forma conservador na economia — a Bolívia cresceu em média 5% ao ano, passando ao largo da recessão que atingiu outros países sul-americanos no biênio de 2015/16. A pobreza extrema, sob Morales — renda de menos de dois dólares diários — retrocedeu de 38% para 18%. Mas caiu na armadilha da sedução da perpetuação no poder, que sempre tenta espíritos autoritários. Foi assim com Chávez e o equatoriano Rafael Correa, outro exemplo do campo nacionalista de esquerda. Morales conseguiu o terceiro mandato, queria o quarto. Convocou plebiscito sobre se queriam que se candidatasse pela quarta vez. Perdeu e não respeitou o resultado. Lançou-se e ganhou um pleito fraudado, segundo auditoria da Organização dos Estados Americanos (OEA). Foi obrigado a voar para o exílio no México.
O projeto da eternização no poder pode ser executado em família: Néstor Kirchner passou a faixa presidencial na Casa Rosada para a mulher, Cristina. Não fosse a morte de Néstor, é provável que Cristina K. devolvesse a presidência da Argentina ao marido. Não seria novidade no país vizinho, em que o caudilho e ditador populista Juan Domingo Perón deixou para a História cenas de aparições na sacada da Casa Rosada ao lado da mulher, a já mitológica Evita Péron. Bem mais tarde, elegeu com a força de seu nome Isabelita. Tudo em família. Lula tentou fazer o mesmo com Dilma, mas a presidente não cedeu e reelegeu-se.
As tragédias políticas sul-americanas se sofisticam. Mas com características permanentes: salvadores da pátria, populistas — de esquerda ou direita —, todos autoritários. Alternância no poder, instituições republicanas independentes e fortes, liberdades, eleições de fato livres e transparentes precisam ser inegociáveis. É o caminho para proteger a América do Sul do seu passado.
A recuperação da Santa Casa – Editorial | O Estado de S. Paulo
A recuperação da Santa Casa de São Paulo da grave crise iniciada em 2014 é uma boa notícia para a capital, onde ela ocupa posição de destaque no sistema de saúde pública, especialmente no atendimento à população de baixa renda. O resultado obtido pela Santa Casa deve ser ressaltado também porque ele ocorre apesar das condições adversas contra as quais lutam todas as instituições do gênero espalhadas pelo País. A principal delas – fonte das agruras financeiras dos hospitais filantrópicos – é a tabela de procedimentos com base na qual o Sistema Único de Saúde (SUS) remunera os serviços que lhe prestam esses hospitais, que o governo mantém defasada há muitos anos.
A crise foi desencadeada em 2014 pelo fechamento do pronto-socorro da Santa Casa. Em 2015, a instituição começou a renegociação de seu passivo bancário e com os fornecedores, para o que conseguiu uma linha de financiamento de R$ 360 milhões na Caixa Econômica Federal. Em abril de 2017 iniciou um programa de recuperação de sua capacidade operacional e, no final desse ano, estabeleceu negociações com a Fazenda Nacional para liquidar seu passivo com a União. Isso levou à assinatura, em março de 2019, do acordo que possibilitou pagar R$ 260 milhões, obter desconto de R$ 60 milhões e refinanciar o saldo em 15 anos. No total, houve uma redução de R$ 360 milhões (45% do total) no passivo da instituição. Hoje o passivo da Santa Casa é o financiamento de R$ 360 milhões da Caixa, que está sendo renegociado, e R$ 50 milhões com fornecedores e funcionários.
Ao mesmo tempo, foram adotadas medidas para remodelar a estrutura organizacional da Santa Casa em todos os setores. O tempo de permanência do paciente no serviço passou a ser monitorado desde sua chegada até o momento em que passa por atendimento médico, por meio de prontuário eletrônico. Os resultados dessas e outras medidas destinadas a melhorar a gestão são animadores. A duração do processo que vai da chegada do paciente até seu atendimento diminuiu 2 horas, o que permite atender maior número de pessoas com a mesma estrutura. No último mês, foram realizados 52 mil atendimentos, 35% a mais que a média mensal de 38,6 mil em 2017.
Foram recolocadas em pleno funcionamento, no ano passado, 17 salas cirúrgicas que estavam com restrições de uso. Neste ano, houve meses com mais de 2.400 internações para uma média mensal, no ano passado, de 1.800. Além disso, houve uma redução de quase 2 dias na média de permanência de pacientes internados no Hospital Central da Santa Casa. A redução de permanência de apenas um dia possibilita a liberação de 98 leitos. Nos prontos-socorros da instituição são atendidos 20 mil pacientes por mês, sem macas nos corredores. Ela mantém o único pronto-socorro de grande porte da capital. E realiza por ano, em todos os seus serviços, mais de 2,5 milhões de atendimentos.
Ao superar a crise por que passou, a Santa Casa volta a cumprir integralmente o papel fundamental que tem na saúde pública da maior cidade do País. Mas, não demora muito, poderá se ver às voltas com novas dificuldades, porque o foco gerador de crises nos hospitais filantrópicos continua intacto – a defasagem da tabela de procedimentos do SUS.
A falta de reajuste adequado dessa tabela, ao longo de sucessivos governos, fez com ela ficasse tão desatualizada que consegue cobrir apenas 60% dos custos dos atendimentos prestados ao SUS pelas Santas Casas e demais hospitais filantrópicos. Como os restantes 40% não surgem do nada, aquelas instituições são obrigadas a se endividar continuamente para honrar seus compromissos. Na prática, são elas que pagam, no lugar do governo, 40% dos atendimentos que fazem. É uma situação absurda e insustentável por muito mais tempo.
Ao ajudar as Santas Casas a pagar suas dívidas, com empréstimos a juros favorecidos, o governo nada mais faz, portanto, do que sua obrigação. Se elas e os demais hospitais filantrópicos entrarem em colapso, levam junto a rede pública de saúde, pois respondem por mais de 50% dos atendimentos do SUS. Está se aproximando a hora em que o governo terá de enfrentar com desassombro esse problema.
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