sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

José Eduardo Faria* - Economia de mercado e jogo de azar

- O Estado de S.Paulo

Parece que o que a equipe ministerial entende por liberalismo é o chamado libertarismo

Baixadas num período de sete meses, as Medidas Provisórias (MPs) da Liberdade Econômica e do Emprego Verde Amarelo têm como denominador comum o objetivo de afastar os obstáculos que estariam impedindo a retomada do crescimento, mediante a redução da intervenção regulatória do Estado. A diretriz programática dos dois textos foi classificada pelo ministro da Economia e por sua equipe como liberal. Mas que sentido eles dão a esse termo?

Historicamente, o liberalismo que predominou nos séculos 19 e 20 valorizou o livre jogo de mercado. Mas também deu o devido valor à regulação estatal em matéria de institucionalização do direito de propriedade, publicidade dos atos negociais, registro comercial, punição de falência fraudulenta, combate a práticas monopolistas e criação de mecanismos judiciais para assegurar a inalterabilidade e o cumprimento de obrigações contratuais - “a santidade dos contratos”, como dizem os juristas portugueses. Decorre daí a importância de alguns dos mais importantes primados do Estado de Direito, como, por exemplo, a igualdade de todos perante a lei, o acesso aos tribunais, o direito ao devido processo legal, o instituto jurídico da defesa da concorrência e o direito do consumidor.

Doutrinariamente, o liberalismo é avesso ao dirigismo estatal. Ele enfatiza o jogo de mercado, é certo. Contudo destaca as liberdades públicas como marcos normativos desse jogo e da atuação do Estado sobre os cidadãos, segundo regras democraticamente definidas por eles. Não descarta, igualmente, o princípio da responsabilidade social de quem empreende e obtém lucros, enfrentando os inevitáveis riscos de mercado. E, por mais que seja pró-mercado no âmbito da economia, o liberalismo clássico entende que, onde o Estado é reduzido ao mínimo, o contrato social tende a se esgarçar, levando ao risco de o estado civil retroceder ao estado da natureza.

Poucos são os vestígios da influência do liberalismo histórico e doutrinário nas MPs da Liberdade Econômica e do Emprego Verde Amarelo. Ao contrário, o que os autores desses dois textos entendem como mercado parece ser, no limite, uma economia desjuridificada, inteiramente liberta de todos e quaisquer constrangimentos impostos pelo poder público. É a ideia de um mercado cada vez mais autorregulado, que não precisa responder perante a comunidade, conjugada com a defesa de um Estado minimalista e de formas privadas de Justiça, como a arbitragem.

Nesse sentido, como podem ser chamados de liberais os dispositivos dessas MPs que limitam a discricionariedade dos fiscais do trabalho, enfraquecendo os mecanismos de punição das empresas infratoras?

São programaticamente liberais os dispositivos que suprimem direitos, criam dificuldades para o acesso de segurados do INSS ao Poder Judiciário? Pode-se dizer o mesmo dos dispositivos que taxam quem recebe seguro-desemprego para compensar o que deixará de entrar no caixa do Tesouro por causa dos benefícios fiscais dados às empresas que contratarem jovens de 18 a 29 anos? De que modo classificar como liberais MPs - juntamente com a PEC da Previdência - que hiper-responsabilizam os indivíduos por seu futuro, ao mesmo tempo que promovem a desresponsabilização civil de agentes econômicos, sob a justificativa de destravar os gargalos que impedem o crescimento?

Na realidade, o que a equipe do Ministério da Economia parece entender por liberalismo é o que tem sido chamado de libertarismo, na linguagem de salões acadêmicos, ou de economia de cassino, na linguagem dos saloons travestidos de mercado financeiro. É uma economia desregulamentada, em que a regra é a exploração ilimitada da conjuntura, com os agentes procurando maximizar a qualquer preço todas as vantagens possíveis. Buscam, egoisticamente, vantagens de curto prazo ao mesmo tempo em que desprezam suas responsabilidades para com os outros e a própria comunidade. É como se o mercado fosse dotado de um poder constituinte absoluto, rejeitando qualquer possibilidade de regulação estranha à economia e aos seus cálculos de oportunidade. É a redução do jogo de mercado a um jogo de azar em que, diante do risco e da indeterminação dos lances futuros, só interessa aos agentes o ganho imediato na jogada presente.

A obsessão por reduzir ao mínimo a intervenção regulatória estatal, por um lado, e privatizar indiscriminadamente serviços públicos, por outro, revela uma visão distorcida das instituições. Parece não perceber que políticas públicas são implementadas por meios públicos - e estes envolvem não apenas recursos governamentais, mas, igualmente, as leis e os instrumentos de sua aplicação. Essa visão distorcida dá ênfase excessiva à ideia de função, em termos de produção de resultados e rentabilidade financeira. Esquece, porém, dois pontos importantes: a) em termos institucionais, função implica noção de responsabilidade; e b) se determinadas funções podem ser terceirizadas ou privatizadas, determinadas responsabilidades não podem. Nessa visão distorcida não há lugar, assim, para ideias como planejamento, metas de médio e longo prazos, políticas compensatórias e tratamento isonômico que deve reger as relações entre capital e trabalho.

Instituições, normas e garantias que tornam os resultados das transações seguros e previsíveis, como o cumprimento das obrigações contratuais, são fundamentais para a economia de mercado. Portanto, o que se chama de políticas econômicas liberais é algo que pode ser entendido apenas dentro dos marcos normativos postos pelo Estado e da distinção entre o que é público e privado. Ao insistir na tese de que o mercado não pode ser regulado por qualquer estrutura normativa transcendente às próprias transações, e ao defender uma liberdade radical no universo dos negócios, a equipe do Ministério da Economia pode ser tudo. Menos liberal.

* Professor titular da USP, é chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito

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