- Folha de S. Paulo
Juiz que julga não deve ser o mesmo que atua nas apurações
Se me fosse dado criar um sistema penal a partir do zero, eu incluiria algo parecido com o juiz das garantias. Um magistrado que participe das investigações, mesmo que à distância, apenas por trocar ideias com policiais e procuradores, já tende a criar uma má vontade em relação ao réu. O ideal é que o juiz que julga não seja o mesmo que atua nas apurações.
Esse, contudo, não é o único nem o mais poderoso viés humano a conspirar contra o Direito. Um problema bem mais grave, me parece, é grande peso que a figura da testemunha ainda desempenha nos processos.
Sabemos hoje que a memória é absolutamente não confiável. Embora imaginemos nossas reminiscências como um registro preciso e estável do passado, elas são modificadas ao sabor das emoções toda vez que as acessamos. Psicólogos não têm dificuldades para executar experimentos em que implantam memórias falsas na cabeça das pessoas. Policiais também não, mesmo que inconscientemente.
É só substituir as sempre suspeitas testemunhas pelas cada vez mais onipresentes câmeras, dirá o otimista. Imagens gravadas e cuja cadeia de custódia esteja preservada são decerto mais confiáveis do que as memórias, mas também elas trazem problemas. Há trabalhos mostrando que até o ângulo em que um interrogatório é filmado influi nas decisões do júri. Vídeos feitos por bodycams instaladas no uniforme do policial também geram uma predisposição contra o réu.
A lista de descobertas da neurociência que ameaçam a possibilidade teórica de um julgamento justo é extensa. Devemos trabalhar para eliminar ou ao menos reduzir os vieses relevantes. É preciso, porém, agir com cautela, para não desorganizar ainda mais o sistema de justiça.
Nesse contexto, parece-me temerária a criação da figura do juiz das garantias num prazo exiguíssimo e sem a previsão de recursos para custear as mudanças necessárias. Fica parecendo briguinha de poder.
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