- Folha de S. Paulo
Cabe aos Poderes agir para proteger a sociedade de ataques insidiosos
Umas das grandes preocupações dos arquitetos da Constituição americana era que o governo caísse nas mãos de uma facção.
Para James Madison, uma facção consistia na união de “um determinado número de cidadãos, que constituam uma maioria ou minoria face ao todo, animados por algum impulso ou paixão, ou interesse, adverso aos direitos dos outros, ou aos interesses permanentes e globais da comunidade” (Federalistas, nº 10).
Quando minoritárias, seus impulsos destrutivos seriam contidos pela maioria. Porém, quando atraíssem a maioria, o bem comum e os direitos constitucionais ficariam à mercê de “homens de temperamento faccioso, com preconceitos locais, ou com desígnios sinistros”.
Como numa sociedade que se pretenda pluralista não se pode eliminar a existência de facções, sob o risco de suprimir a liberdade, o grande desafio é dispor as instituições de forma que possam controlar os efeitos deletérios das ações facciosas sobre o corpo social.
Federalismo e separação de Poderes se apresentam como engenhosas ferramentas.
Desde janeiro de 2019 temos um governo que age de forma incessante contra os direitos fundamentais e os interesses mais permanentes da comunidade, tais como previstos na Constituição.
O incentivo à degradação do meio ambiente, a constrangedora submissão da soberania nacional aos interesses de Trump, os ataques aos direitos sociais, às liberdades civis e, sobretudo, às minorias vulneráveis, como os indígenas, confirmam essa postura.
O comportamento presidencial a partir da pandemia apenas escancarou sua natureza facciosa. Não há empatia pelo sofrimento alheio ou respeito ao direito à vida e à saúde da população, especialmente os mais pobres.
Não se busca o bem comum a partir de parâmetros racionais ou de cooperação com as demais autoridades; o único objetivo parece ser saciar as ambições e impor os interesses imediatos da facção.
Felizmente nosso federalismo e sistema de separação de Poderes não têm se mantido inertes.
O Congresso nacional —estruturalmente pluralista— vem se mobilizando ao longo desta legislatura para conter os ataques mais insidiosos a direitos e, a partir do início da pandemia, para criar mecanismos que favoreçam sobreviver à tempestade.
Também os entes federados, através dos governadores, têm se esforçado para fechar o cerco a iniciativas facciosas, assim como para suprimir o vácuo de coordenação política deixado pelo presidente.
Nestas duas últimas semanas foi a vez do Supremo Tribunal Federal, que andava silente, juntar-se aos esforços de contenção do arbítrio e da insensatez. O ministro Alexandre de Moraes, de maneira cirúrgica, esvaziou as pretensões do governo de ver expandida a sua capacidade de governar por medidas provisórias, de restringir o direito de acesso à informação, assim como de suprimir as competências dos estados e municípios no combate à pandemia.
Também o ministro Luís Roberto Barroso impôs importante derrota à pretensão do governo de dar início a uma temerária campanha para que as pessoas abandonassem as determinações de distanciamento social. Por fim, o ministro Ricardo Lewandowiski apôs alguns obstáculos à redução de salários por mero acordo individual, contrário à Constituição.
Foram decisões prudentes e corajosas. O desafio agora é superar a tradicional fragmentação do tribunal, reconstruindo a autoridade do colegiado. Isso é fundamental para que o Supremo possa dar sua quota de contribuição à defesa da República.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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