- Folha de S. Paulo
A polícia do pensamento comete pelo menos quatro ilícitos
O ministro da Justiça está de olho em você, simpatizante do antifascismo. Atenção policial, professor ou engenheiro civil formado que não pensa ideias corretas: Mendonça sabe quem você é, onde mora e o que anda fazendo no escurinho da quarentena.
Mendonça não é um antiantifa raiz. Ex-entusiasta de Lula, faz qualquer coisa pelo chefe. Se precisar, até oração em cerimônia estatal. Mediocrizou a função de advogado-geral da União e agora a de ministro da Justiça ao se incumbir do papel de sentinela do presidente. Há tempos usa seu cargo para solicitar providências contra críticas pessoais a Bolsonaro.
Na semana passada, descobriu-se que órgão do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) sob sua autoridade monitora policiais e intelectuais em sigilo. Não por suspeita de ilícito (o que justificaria investigação policial, não do Sisbin), mas por suspeita de pensamento com o carimbo "antifascista".
Regimes autoritários adotam um arsenal de ferramentas contra inimigos: ao lado da execução sumária, do desaparecimento, da tortura e da estigmatização pública, a polícia do pensamento é sua forma mais insidiosa de anular o oponente.
A polícia do pensamento, "uma das mais importantes instituições do mundo moderno" (Tucci Carneiro), almeja domesticar e reprimir heterogeneidade. Opera pela técnica da suspeição presumida e da repressão preventiva. Sua finalidade é gerar medo, autocontrole e autocensura. Espera-se que os fichados nos arquivos de Mendonça voluntariamente parem de incomodar, pois a qualquer momento um dossiê pode vir à tona.
O fato não provoca apenas tensão política, que se resolve por conversa e aperto de mão. Pede esclarecimento público e eventual sanção jurídica pelos ilícitos. O ministro parece cometer pelo menos quatro:
1) crime de responsabilidade ("violar patentemente qualquer direito ou garantia individual" - art. 7º, IX, da Lei do Impeachment);
2) crime de abuso de autoridade ("proceder à persecução administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente", art. 30, lei 13.869/19);
3) improbidade administrativa ("praticar ato visando fim proibido em lei" e "atentar contra princípios da administração", como transparência e impessoalidade - art. 11, I, lei 8.429/92);
4) ilícito contra o direito à informação ("utilizar indevidamente informação que se encontre sob sua guarda" e "impor sigilo à informação para obter proveito pessoal ou de terceiro, ou para fins de ocultação de ato ilegal", art. 32, II e V, lei 12.527/11).
O mesmo ministro que defende o direito de realizar, em meio a uma pandemia, atos pelo fechamento de instituições democráticas e de celebração do AI-5; o mesmo ministro que justifica a presença do próprio presidente nos atos, como se tudo coubesse numa caixinha indistinta da liberdade de expressão, monitora pessoas que professam ideias contra o fascismo.
Quem manifesta simpatia ao símbolo "antifa" não tem identidade homogênea, não integra movimento organizado, não segue qualquer cartilha predefinida de protesto. "Antifa" é apenas um rótulo aglutinador para uma pluralidade de pessoas que compartilham de uma preocupação. No Brasil de hoje, a preocupação com Bolsonaro.
A origem histórica do rótulo remonta aos anos de 1920 na Itália. Ao longo do século 20, teve múltiplas conformações pelo mundo. Mussolini chamava antifas de "degenerados". Trump chama antifas de terroristas e criminosos. Bolsonaro emula Trump.
Que ideia antifascista molesta Mendonça? A que reivindica respeito a minorias? Ou a que pede o direito de existir em igual liberdade? Preocupa Mendonça que antifascistas e antirracistas se aproximem? Que seus corpos ocupem as ruas? Que gritem?
O constitucionalismo do pós-guerra comprometeu-se com a imunização antifascista e concebeu vacina institucional contra o mal político radical. Bolsonaro, sabemos, investe em cloroquina, não na Constituição de 1988. Dedica-se a propagar o vírus que varre democracias. Mendonça é seu despachante.
A vocação antiantifa mata a liberdade. Afinal, menos com menos dá mais.
*Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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