- O Estado de S.Paulo
É
torcer para as vacinas, e que Bolsonaro não tente reescrever história e recriar
personagem
Com mais de 100 mil brasileiros mortos e de
três milhões de contaminados, é impossível não lembrar que o Brasil é
vice-campeão da covid-19 e apontado no mundo inteiro como o campeão de erros na
condução da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro entra para a história como o turrão que não liderou o País
na hora decisiva, fez tudo errado e se aliou ao vírus, em vez de combatê-lo.
Entre a ciência e o que Bolsonaro acha, ele ficou com o que ele
acha. Entre seguir as orientações de organizações médicas do mundo inteiro e os
cochichos de amigos e aliados, ele optou pelos cochichos. Entre admitir os
erros gritantes e dobrar a aposta, ele dobrou. Entre se solidarizar com as
vítimas e lavar as mãos, ele lavou as mãos, produzindo frases que entram não
para o anedotário da história, mas para a memória internacional da falta de
empatia.
“Histeria da mídia”, “gripezinha”, “e daí?”, “todos nós vamos
morrer um dia”, “não podemos entrar numa neurose”, “não acredito nesses
números”, “o vírus está indo embora”, “eu não sou coveiro, tá?” “quer que eu
faça o quê?”, “eu sou Messias, mas não faço milagres”. Já pertinho da marca de
100 mil brasileiros mortos, Bolsonaro continuou sendo Bolsonaro e entre
sorrisos, ao lado do eterno interino ministro da Saúde, deu de ombros: “Vamos
tocar a vida”.
O que os amores, pais, mães, filhos, irmãos, amigos e colegas dos
100 mil brasileiros mortos acham disso? Tocar a vida? Como assim? E o
presidente foi adiante: “Tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse
problema”. Buscar uma maneira só a esta altura da desgraça? Maneira de “se
safar”? Desse “problema”? Uma frase, quatro absurdos.
São falas que não condizem com um presidente no auge de uma
pandemia assassina que destrói vidas, famílias, empresas, empregos, renda e a
economia do País. No mundo democrático, presidentes e primeiros ministros, com
poucas exceções, falam – e agem – como líderes, respeitam a ciência e os
cientistas, dão rumos, apresentam soluções, admitem erros. Conferem a devida
solenidade, demonstram preocupação, dor, compaixão.
No Brasil, vice-campeão da covid-19, o presidente aparece
sorrindo, provocando, ironizando a desgraça. Pior: dando mau exemplo,
tomando decisões absurdas. E atrapalha muito ao desestruturar o Ministério da
Saúde, rasgar protocolos internacionais, jogar no lixo a única vacina possível
– o isolamento social – e virar, alegremente, ridiculamente, perigosamente,
garoto-propaganda de um remédio sem nenhuma comprovação, de nenhum órgão sério,
de nenhum país.
Sem coordenação central, com Bolsonaro só ligado em política,
guerreando contra governadores e prefeitos, viu-se o caos. A covid-19 dá um
banho em cientistas, cheia de armadilhas cruéis, manhas assassinas, surpresas a
cada hora. Não bastasse, ela aqui encontra o ambiente perfeito para destruição
e dor.
A única bala de prata que resta para vencer uma guerra já perdida
são as vacinas, que chegam ao Brasil pelos acordos entre o governo federal e
Oxford e entre o governo de São Paulo e a China. É torcer e rezar, contando com
uma expertise comprovada brasileira: as vacinações em massa. Se os testes forem
um sucesso, se o Brasil cuidar adequadamente da logística e da compra e
produção de insumos, há luz no fim do túnel. Antes tarde do que nunca.
Bolsonaro está sorrindo, confrontando, agredindo a população com expressões muito além de impróprias. Que não venha depois, com boa parcela da população vacinada e os números em queda, tentar reescrever a história e reinventar seu personagem numa das maiores tragédias do planeta. Todo mundo sabe que a culpa é de um vírus ardiloso, cheio de mistérios, que encontrou no presidente do Brasil um grande aliado.
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