Nos Estados Unidos, nada será como antes do Vidas Negras Importam. O movimento chacoalhou o país com protestos contra a violência da polícia e a discriminação racial. O lema nasceu em 2013, mas ganhou força inédita neste ano. Depois do assassinato de George Floyd, já levou ao menos 15 milhões de americanos para as ruas.
No Brasil, o governo lançou o programa Nenhuma Vida Importa. O slogan não aparece na propaganda oficial, mas está por trás das ações e omissões de Jair Bolsonaro. Ele deu as costas para a maior pandemia em um século, que ultrapassou ontem a marca de cem mil vítimas no país. O presidente se recusou a coordenar o combate ao coronavírus. Mais do que isso, fez questão de ostentar indiferença em relação às mortes. Chamou a doença de “gripezinha”, sabotou as medidas de isolamento, incentivou seguidores a invadirem hospitais.
Em alguns momentos, pareceu se divertir com o sofrimento alheio. “Não sou coveiro, tá certo?”, debochou, em abril. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, gracejou, na semana seguinte.
No dia em que o Brasil chegou aos dez mil mortos, Bolsonaro saiu para passear de jet-ski. Na marca dos 90 mil, vestiu um chapéu de vaqueiro e cumpriu agenda de candidato no sertão nordestino.
Na quinta-feira, ele
disse lamentar “todas as mortes”. “Já tá chegando ao número de cem mil talvez
hoje, não é isso?”, perguntou, em transmissão pelas redes sociais. Ao ouvir que
o número seria atingido no fim de semana, produziu mais uma pérola de
insensibilidade. “Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse
problema”, afirmou.
Na cabeça do
presidente, o problema não é a doença. Ele quer se safar de outros
aborrecimentos, como o risco de um processo no Tribunal Penal Internacional.
Por aqui, as instituições já se conformaram com sua negligência. A elite
política deixou de falar em impeachment, e o Judiciário voltou a operar na
lógica do conchavo.
Sem apoio federal,
prefeitos e governadores se curvaram às pressões para reabrir a economia a
qualquer custo. A flexibilização apressada vai manter o vírus em circulação por
mais tempo. “Estamos com a consciência tranquila”, disse Bolsonaro na quinta.
Os 100 mil mortos não estão mais aqui para responder.
Depois de cinco meses,
a sociedade também parece anestesiada pelo morticínio. A perda de mais de mil
brasileiros por dia deixou de dominar o debate público. A militarização do
Ministério da Saúde, sem titular há 86 dias, não é mais motivo de espanto. O
presidente insiste em receitar remédio milagroso, e as entidades médicas reagem
com resignação. Ele exibe sua caixinha de cloroquina para uma ema, e a cena é
recebida com bocejos de tédio.
Num país que
normalizou a apologia da tortura, a negação da ciência também virou fato
corriqueiro. A cada dia que passa, o programa Nenhuma Vida Importa ganha novos
adeptos. Bolsonaro está vencendo pelo cansaço.
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