- Folha de S. Paulo
Sem derrotar o racismo, jamais nos humanizaremos como nação
O racismo é uma invenção branca voltada a naturalizar a exclusão, a subordinação e a exploração da população negra, assim como a legitimar a violência contra pretos e pardos, sem a qual a dominação branca não subsistiria.
O racismo está presente em todas as esferas da vida brasileira. Ele reforça e aprofunda a persistente desigualdade política, econômica e social. O racismo basicamente exclui os negros da esfera política e conspira para sua subordinação e exploração no âmbito econômico, assim como estabelece hierarquias e discriminação na vida privada, nas relações pessoais e mesmo afetivas. Nada escapa a essa ideologia difusa, intricada, mas sempre cruel do racismo.
As últimas semanas foram pródigas em expor a violência e a discriminação impostas contidamente a pessoas pelo simples fato de serem negras ou professarem uma religião de origem africana. Como salienta Flávia Oliveira, “o racismo não dá trégua”.
A resistência heroica de Dandara e Zumbi de Palmares, passando por Tereza de Benguela, Luís Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, Laudelina de Campos Mello, Carolina de Jesus e Abdias do Nascimento, chegando a Marielle Franco, são a demonstração de que o povo negro jamais abdicou de denunciar as injustiças e lutar pela igualdade.
Essas lutas do povo negro levaram ao fim da escravidão e promoveram inúmeros avanços, alguns deles expressos na Constituição de 1988 e em políticas afirmativas e antidiscriminatórias colocadas em prática nas últimas décadas.
Em face das fragilidades e insuficiências, essas políticas não têm sido capazes de promover uma verdadeira igualdade jurídica ou de oportunidades, muito menos colocar abaixo essa densa e intrincada estrutura de dominação branca, sedimentada ao longo de séculos. Negros continuam tendo menos acesso a educação, saúde, moradia, saneamento e cultura. Aos negros são negadas as mesmas oportunidades de emprego e de crédito, o que consequentemente torna a renda dos negros mais baixa que a dos brancos.
Jovens negros estão submetidos a um verdadeiro extermínio em nossas periferias sociais, sendo objeto preferencial do arbítrio e da violência do Estado. Essa violência sistemática e deliberada contra a população negra e pobre tem por objetivo assegurar a manutenção de uma sociedade hierarquizada e desigual.
Com a ascensão de um governo hostil aos direitos humanos, a crueldade do racismo estrutural brasileiro ficou ainda mais explícita. É imperativo que pessoas brancas que repudiam o racismo juntem seus esforços aos do movimento negro na luta contra a desigualdade, a violência e a injustiça. Como sempre lembra Sueli Carneiro: “Embora beneficiários desse nefasto pacto racial brasileiro, brancos antirracistas precisam demonstrar que não são seus signatários” e que não reproduzem suas práticas.
Neste momento, não basta ser contrário ao racismo. É preciso fazer mais. É imperativo colocar o enfrentamento do racismo no centro da vida política brasileira; defender e fortalecer políticas afirmativas; alterar práticas corporativas; reformar as agências de aplicação da lei e reprimir juridicamente condutas discriminatórias e racistas que permeiam as nossas relações cotidianas.
Sem enfrentar o racismo, jamais superaremos a desigualdade econômica, a marginalização social, a opressão e a violência. Sem derrotar o racismo, jamais nos humanizaremos como nação. O protagonismo do movimento negro não exime brancos antirracistas da responsabilidade de participar dessa luta.
Como alerta o manifesto da Coalizão Negra por Direitos: “Com racismo não há democracia”.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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