A proposta de reforma administrativa toca no nervo exposto do Estado, mas não oferece uma saída consistente
Ao encaminhar sua proposta de reforma administrativa ao Congresso, o Executivo enfrentou o tabu: a estabilidade do funcionalismo, garantida a todo servidor concursado. É verdade que, por precaução ou omissão, preferiu não mexer nos funcionários da ativa, naqueles considerados “membros de Poder” (como juízes ou procuradores) e criou uma situação semelhante à atual para as carreiras consideradas de Estado (como diplomatas ou auditores). Para esses, continuaria valendo a regra atual, que garante estabilidade aos que completam três anos no serviço público. Mesmo assim, o simples fato de querer mudar as regras para os demais tocou num nervo exposto. Não é outro o motivo para haver tanto ceticismo no Congresso em relação à proposta do governo.
Não faltam argumentos razoáveis para defender a estabilidade em carreiras essenciais ao funcionamento do Estado, em particular as técnicas. Se estivessem sob ameaça constante de demissão, representantes do interesse público estariam sujeitos a pressões políticas ou financeiras inaceitáveis. Não dá para imaginar que os critérios para demitir juízes, diplomatas ou acadêmicos possam ser os mesmos que para funções administrativas, burocráticas e de manutenção equivalentes às que existem na iniciativa privada. Toda a discórdia reside em como e onde traçar os limites.
A estabilidade funcional foi instituída no Brasil para proteger o interesse público das pressões políticas e para garantir continuidade da máquina administrativa. É óbvio que algumas áreas dependem desse tipo de escudo, mas não há lógica na sua extensão às mais de duas centenas de carreiras funcionais. A inflexibilidade manietou a administração e inflou seu custo, sem correspondência na qualidade dos serviços prestados pela União, pelos estados e pelos municípios.
No papel, a estabilidade de servidores concursados é confirmada depois de três anos de trabalho, período identificado como “estágio probatório”, mediante uma avaliação de desempenho apenas teórica (mais de 99% são aprovados). Na proposta original de reforma que chegou a circular, o governo considerava estender esse período para dez anos, mesmo para as carreiras de Estado. Há certa arbitrariedade na duração. Por que três em vez de dez anos? Por que não cinco? Não há explicação.
Mais importante que o período até a garantia de estabilidade, é o que acontece depois dela. Mesmo funcionários estáveis deveriam poder ser demitidos quando comprovadamente incompetentes.
Para isso, há duas décadas, os senadores aprovaram um projeto com regras sobre a perda de cargo público por insuficiência de desempenho, que valeria mesmo para funcionários estáveis. A proposta (PLP nº 248) foi modificada na Câmara. Voltou aos senadores, que mudaram o texto e o devolveram aos deputados. Desde 2007, aguarda decisão da Câmara. Por que não aproveitá-la na reforma? Não há explicação.
A proposta do governo só valeria para servidores que ingressarem no serviço público depois da promulgação da emenda constitucional. O argumento é que os atuais têm direitos adquiridos — e haveria uma enxurrada de ações na Justiça para garanti-los. Ao mesmo tempo, é como se houvesse no Estado brasileiro um direito adquirido à improdutividade ou ao privilégio. Por que limitar as mudanças na estabilidade aos futuros servidores? Também não há explicação.
O mecanismo para estabilidade adotado no Brasil é inspirado no vigente na França, onde a segurança no emprego público existe desde o Código Civil napoleônico, de 1807. A diferença é que, há 213 anos, os franceses concedem estabilidade ao funcionalismo com base no critério da qualidade dos serviços prestados à cidadania, algo que, definitivamente, não ocorre no Brasil.
Em vários outros países os critérios são bem menos benevolentes com o funcionalismo. Na Alemanha, funcionários públicos podem ser demitidos mediante critérios semelhantes aos do setor privado. No Reino Unido e na Holanda há demissões por baixo desempenho. A necessidade de reestruturação é um argumento suficiente na Suíça e na própria França, onde há programas de realocação e incentivo à demissão voluntária.
Existe consenso sobre a urgência de implementar mecanismos ágeis de gestão de pessoal, para aumentar a eficiência nos serviços públicos. Mesmo nas empresas estatais, onde em tese os funcionários não têm direito à estabilidade, a Justiça tem decidido que só pode haver demissões por justa causa ou programas de reestruturação. Uma ação que tramita no Supremo, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, procura nivelar os critérios aos mesmos da iniciativa privada.
Por toda a máquina do Estado, o argumento do direito adquirido acabou convertido em álibi para a ineficiência. Isso apesar de a própria Constituição de 1988 já prever a possibilidade de demissão de servidor estável, como lembra o jurista Carlos Ari Sundfeld.
Na Câmara e no Senado se considera que as mudanças na estabilidade poderiam ser mais céleres se feitas por leis ordinárias ou complementares, como a já aprovada no Senado, que exigem menos votos para aprovação que uma emenda constitucional. Apesar da estratégia questionável e de risco adotada pelo Executivo, o governo tem o mérito de ter posto a questão na mesa. É urgente mesmo que o país adote critérios mais razoáveis para a estabilidade do funcionalismo. Se antes faltava vontade política, há hoje uma realidade objetiva de agonia fiscal.
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