- O Globo
A grande vantagem de Biden está na ampla frente que se constituiu a seu favor
As eleições nos EUA parecem decididas, mas não estão. É o que disse no fim de agosto Nate Silver, dono do site FiveThirtyEight, que analisa as pesquisas realizadas no país. Joe Biden e Kamala Harris são favoritos com 71% de chances, contra 29% a favor de Trump. Seria tranquilizador para os democratas, não fosse o fato de que, há quatro anos, essas mesmas proporções eram conferidas a Hillary Clinton e ao líder republicano. Não aconteceu apenas no pleito de 2016. Em 1988 e 2004, da mesma forma, os candidatos democratas pareciam invencíveis, porém, na hora da apuração dos votos, perderam.
O pior é que, mesmo ganhando, um candidato pode perder. É uma peculiaridade da “mais antiga democracia do mundo” — o voto é universal, contudo não vence quem recebe maior quantidade de votos, ganha quem chega na frente num estranho Colégio Eleitoral, constituído por delegados estaduais, cujo número é fixado de acordo com a população local. Se um candidato ganha por um voto num determinado estado, captura todos os delegados para seu lado. Assim, em 2016, Hillary teve vantagem de cerca de 2,9 milhões de votos em relação a Trump. Ganhou, mas não levou, pois não teve maioria no Colégio Eleitoral.
Neste ano, se as pesquisas indicam vitória tranquila dos democratas em estados populosos, como Nova York e Califórnia. Noutros, estratégicos, como na região industrial do Nordeste (Pensilvânia, Michigan e Wisconsin), a distância que separa Biden de Trump é bem pequena e sujeita a surpresas. Sem falar no Arizona e na Flórida, onde Biden registra uma dianteira mínima, dentro da margem de erro. Há outros imponderáveis a considerar, como as dificuldades de votar, maiores ou menores segundo as burocracias de cada estado, que têm autonomia para decidir como se processarão as eleições. Há lugares em que o cidadão leva sete horas para votar, o que faz com que muitos desistam ou nem votem, pois o voto não é obrigatório.
A grande vantagem de Biden está na ampla frente política que se constituiu a seu favor. Suas propostas têm procurado fugir ao reformismo mole que marcou os oito anos de Obama: aumento substancial do salário mínimo federal, estancado desde 2009; tributos pesados para as grandes fortunas; elevação das taxas destinadas a financiar o sistema de seguridade social; fixação de um imposto bastante maior sobre as rendas especulativas; duplicação dos impostos sobre lucros realizados no estrangeiro; incremento das verbas para o combate ao aquecimento do planeta.
Embora razoáveis, as propostas estão longe de restabelecer os níveis de justiça social dos EUA nos anos 1950/1960. O dramático é que as desigualdades sociais dispararam no contexto da pandemia. Segundo o site Business Insider, a fortuna dos bilionários cresceu em US$ 700 bilhões desde março passado. Jeff Bezos, dono da Amazon, agradece à Covid-19: ele ganhou US$ 50 bilhões no período. Sua fortuna alcançou US$ 185 bilhões, segundo a revista “Forbes”. Lucro semelhante teve Elon Musk, dono da Tesla, que se tornou, na onda do vírus, o quinto homem mais rico do planeta.
O programa de Biden ficou igualmente mudo diante dos gigantescos monopólios constituídos ao longo da revolução digital — em especial o conhecido GAFA (Google, Amazon, Facebook e Apple) —, presentes em todo o mundo, que precisariam ser fragmentados e se sujeitar ao controle público. Também se poderia esperar uma definição a respeito do desmonte do aparelho policial demencialmente racista, que revolta a população negra e é motivo de vergonha para os que têm sentido de cidadania e dignidade.
Veremos se as esquerdas democráticas terão força para, no caso de uma eventual vitória, cobrar de Biden e Kamala compromisso radical com a democracia, evitando que eles se enredem nas malhas e nas artimanhas do poder, como tem acontecido com tantos líderes reformistas mundo afora.
No momento, trata-se de derrotar Trump. Como disse Michelle Obama em discurso na convenção dos Democratas: “Votem, como se deste voto dependesse a sua vida”.
Professor de História da UFF
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