- O Estado de S.Paulo
Em vez de cair na briga estéril de sempre, podemos seguir lições vindas de Londres
O que é o que é. Os tucanos criaram, os petistas aperfeiçoaram, Temer não mexeu e Bolsonaro quer rebatizar. A resposta é fácil: o Bolsa Família, unanimidade nacional. O programa que destina dinheiro aos brasileiros mais vulneráveis é aprovado por direitas e esquerdas, socialistas e conservadores, desenvolvimentistas e social-democratas, liberais de Chicago que trabalharam em governos petistas (Ricardo Paes de Barros) e liberais de Chicago alinhados com Bolsonaro (Paulo Guedes).
Garantir uma renda mínima aos mais pobres é prioridade no Brasil, assim como um sistema de saúde abrangente e gratuito é algo fundamental para os britânicos. São escolhas das respectivas sociedades, cristalizadas em políticas públicas. Aqui como lá, não é fácil garantir tais benefícios em momentos de restrição orçamentária. Um caso recente da Inglaterra pode inspirar o momento que vivemos no Brasil.
Em 2008, o sistema financeiro mundial derreteu com a crise das hipotecas nos Estados Unidos. Nos anos seguintes, os ingleses tiveram de passar por um ajuste fiscal. Foi uma experiência traumática – sempre é –, mas o ajuste inglês acabou aprovado pela maioria da população. Perderam-se alguns anéis, preservaram-se os dedos: o sistema público de saúde foi mantido. Anos mais tarde, ele seria fundamental no combate à pandemia, além de salvar a vida do primeiro-ministro Boris Johnson.
Vivemos no Brasil um momento parecido. A restrição: a derrocada econômica provocada pelo coronavírus. O objetivo: preservar os benefícios sociais dos mais vulneráveis. A oportunidade: as reformas administrativa e tributária que estão em pauta.
Podemos fazer tudo errado, e cair na briga estéril de sempre. Um lado dirá que a culpa por todos os nossos males é dos funcionários públicos. Outro retrucará defendendo que não há crise fiscal, é só cobrar imposto dos mais ricos. Muito rancor, poucos fatos – e mais uma vez não sairemos do lugar.
Ou podemos, em vez disso, baixar a bola, tomar um “quente chá”, como os ingleses de anedota dos quadrinhos de Asterix, e seguir algumas lições vindas de Londres (estudos sobre o caso britânico, fornecidos pela economista Ana Carla Abrão, colunista do Estadão, estão na versão digital da coluna).
Primeira lição: estabeleça quanto se pode gastar sem comprometer as finanças do país. Segunda: crie uma agenda positiva e crível. O então primeiro-ministro, David Cameron, não foi ao Parlamento pedir corte de gastos puro e simples. Levou, em vez disso, uma proposta detalhada de melhoria do serviço público, com uso massivo de tecnologia. Terceira: seja transparente com a sociedade e a imprensa – comunicação é chave.
E, talvez, o mais importante: nunca derrube o nível do debate. Democracias saudáveis pressupõem direitas e esquerdas fortes. É preciso que umas ouçam o que as outras têm a dizer. É fato que o Brasil é um dos países emergentes que mais gastam com funcionalismo, e as mudanças terão de passar por aí. É fato também que nossa tributação é injusta, e precisamos mudar essa realidade. Os debates sobre as reformas administrativa e tributária serão duros, assim como a discussão sobre a reforma do serviço público foi difícil em Londres – nem por lá tudo se resolve com calmas conversas em torno do quente chá. Buscar um debate sereno, no entanto, vale a pena. É ele que alimenta as democracias – e, aqui como na Inglaterra, viabiliza as escolhas da sociedade.
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