Estamos
vivendo os últimos momentos de um capitalismo de gente e os primeiros momentos
de um capitalismo de gente coisificada, que não pensa, não reclama, não exige, não opina.
“Depois da pandemia” é a ideia de referência
de todas as interpretações de futuro aqui feitas, para indicar-nos que,
supostamente, há uma saída para o caos em que o país se encontra. A pandemia é
só o pretexto que acoberta a diversidade de âmbitos da crise que estamos
vivendo. É só a doença passar que tudo voltará ao lugar. Qual lugar?
O
lugar desse retorno imaginário é uma ficção ideológica, um lugar e um tempo que
nunca existiram e não tem condições sociais, econômicas e políticas de existir.
É o futuro fantasioso do caduco neoliberalismo econômico que estaria, assim,
criando sua sociedade ideal. A sociedade sem gente perturbadora da economia, a
que reivindica direitos e respeito à condição humana. E aos direitos sociais
justos e necessários.
O capitalismo desse “depois” é uma invenção que despoja o verdadeiro capitalismo de tudo que lhe é próprio, especialmente as tensões da criatividade, da inovação e das conquistas sociais. Estamos vivendo os últimos momentos de um capitalismo de gente e os primeiros momentos de um capitalismo de coisas, de gente coisificada, que não pensa, não reclama, não exige, não opina, não protagoniza as possibilidades históricas e sociais que o próprio capitalismo é capaz de criar.
Tudo
que parece errado no Brasil de hoje é apenas expressão da nossa pós-modernidade
oportunista do acaso e do “E daí?”. A de um país que banalizou a vida e a
ciência e tornou-se refém de um senso comum pobre e enganador. Nesse sentido, o
governo Bolsonaro é o nosso primeiro governo pós-moderno, o do Brasil sem
futuro.
O
atual regime político brasileiro é ideologicamente alimentado pelos absurdos
interpretativos de Milton Friedman, em “Capitalismo e Liberdade”. Obra ultrapassada
de mais de 60 anos, continua “informando” os toscos que precisam de
justificativas pretensamente teóricas para suas aspirações de ganhar muito e
pagar por ele um preço social pequeno.
A
obra pressupõe que a liberdade econômica assegura a liberdade política. O que
não se confirmou. A liberdade econômica atual triunfou com base no
autoritarismo político, como ocorreu no Chile e no Brasil. É a economia da
Guerra Fria.
Nessa
obra o autor confunde a intervenção reguladora do Estado na economia capitalista
com socialismo e com comunismo. Confunde comunismo com stalinismo e a ele reduz
o pensamento e as soluções de esquerda.
O
pensamento de esquerda tem uma decisiva função no conhecimento crítico das
irracionalidades e contradições do capitalismo e expressa as carências da
sociedade em face do poder e do dinheiro que a sufocam. O pensamento de
esquerda é que contém os elementos críticos que iluminam os fatores de crise do
capitalismo e permitem definir rumos de sua superação.
Franklin
Delano Roosevelt salvou o capitalismo americano da Grande Depressão fazendo
justamente o que Friedman não recomendaria. Foi o que transformou a América
falida na potência que conhecemos.
A
economia brasileira só chegaria aonde chegou, nos anos 1930 a 1950, graças à
intervenção do Estado em setores em que a iniciativa privada era incapaz de
fazer os investimentos necessários, como a siderurgia e, depois, o petróleo.
Esse
“depois” expressa o arraigado de uma deformação ideológica e alienante. A de
que a história é evolutiva, que naturalmente descarta as irracionalidades que a
perturbam. Irracionalidades que se difundem para além da economia, como no caso
das consequências destrutivas da pandemia. E por via indireta recaem sobre a
economia, sonegando-lhe mercado e força de trabalho, inviabilizando-a cada vez
mais. Friedman não deixou uma teoria de superação do caos destrutivo que sua
receita de capitalismo provoca.
Não
há depois. O depois já é o agora. Quando o poder político da saúde pública está
nas mãos de amadores, gente com poder de decisão, mas sem discernimento, o
depois está nos cemitérios, nos índices alarmantes de mortes evitáveis de uma
população desamparada e conformista.
Para
o sombrio depois dos desarranjos da pandemia, da economia neoliberal e do
populismo pseudorreligioso das crenças lucrativas, temos a alternativa que os
países capitalistas, democráticos e civilizados adotam: chamem as oposições, as
esquerdas.
Elas
conhecem a rota do bom senso, do equilíbrio, da pluralidade democrática, das
políticas fundadas na ciência. Mas as oposições precisam rever-se profundamente
para que possam ter o protagonismo renovador de que o país carece.
As
teses econômicas, políticas e geopolíticas assumidas pelo governo Bolsonaro são
anacrônicas, anômicas e ultrapassadas. Já eram obsoletas e descabidas quando
fundamentaram o pensamento de Friedman que inspira o governo e seus despistados
e incondicionais apoiadores.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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