Podemos
estar nos encaminhando para o Estado punitivo, em lugar do Estado juiz
A
imparcialidade, além de ser um postulado básico para o juiz que se pretende
justo, empresta dignidade ao próprio sistema penal. Sem ela o sistema se torna
inquisitorial, caótico, e seu escopo passa a ser a vingança e o castigo.
Um
dos mais festejados avanços nesse mesmo sistema penal, que constitui
excepcional vitória civilizatória, foram as regras construídas durante séculos
para legitimar os julgamentos criminais, conciliando o direito-dever do Estado
de perseguir e julgar os autores de crimes, com o direito destes à ampla
defesa, finalizando com um julgamento justo.
Julgamento justo é o que mais se aproxima do ideal humano de justiça, a partir da reprodução fiel, quanto possível, da realidade. Verdade fática, aplicação correta da lei e juiz isento são os requisitos de uma decisão que contribua para a segurança jurídica, além de ser fator indispensável a uma sociedade pacífica e igualitária.
A
distribuição da justiça é missão reservada a um tripé constituído por juízes,
advogados e promotores. Os dois primeiros existem desde os primórdios da
organização do Estado moderno. Os últimos surgiram como representantes de uma
instituição criada mais recentemente e que foi tendo seus contornos e objetivos
moldados com o passar do tempo.
A
partir do crescimento da criminalidade foi se desenvolvendo uma cultura
punitiva que passou a desprezar regras e princípios garantidores da liberdade e
da dignidade pessoais, em nome do pseudo e ilusório “combate à criminalidade”.
A
verdadeira batalha contra o crime deveria ser travada com ações que atingissem
suas causas, para evitar seu cometimento, e não por meio exclusivo da punição,
que se dá quando o crime já se consumou. Atingem-se os efeitos dos crimes, com
desprezo por suas causas.
Como
dito acima, um conjunto de princípios e normas foi construído para dar respaldo
à atividade punitiva, tendo como meta o exame isento do fato penal, sua autoria
e seu enquadramento legal.
Assim,
regras constitucionais e de Direito ordinário constituem o chamado processo
acusatório, no qual imperam, sob pena de nulidade processual caso
desrespeitados, os princípios da ampla defesa, do contraditório, do devido
processo legal, do juiz natural, da imparcialidade e outros.
O
entendimento de que o sistema penal constitui um instrumento de combate ao
crime, pela via do encarceramento, é uma ilusão. Leva parcela da sociedade a
aceitar abusos e arbitrariedades em nome de uma falácia.
Caso
a repressão e as prisões tivessem o condão de diminuir os índices de
criminalidade, o crime estaria em queda e as prisões não estariam acolhendo 70%
de presos que já estiveram nos cárceres, como prova de que cadeia não inibe
novas práticas. Há uma elevação dos índices de criminalidade, embora aumente o
número de presos.
A
sociedade não se pode esquecer de que, sendo o crime um fenômeno social,
humano, qualquer um de nós poderá vir a figurar como acusado de um delito e ser
vítima dessas ilegalidades e da crueldade do sistema penitenciário brasileiro.
O
clamor pela punição e pela repressão não evita o fenômeno criminal, pois a
sanção é apenas aplicada pós-crime, quando já atingiu vítimas e abalou o corpo
social. Evitar o crime pela remoção de suas causas seria a forma mais eficaz de
combate à criminalidade. Um sistema penal que efetivamente cumpra seu
desiderato de garantir a correta aplicação da lei deve ter como base a
imparcialidade do magistrado que preside e julga a causa.
É
com grande preocupação e apreensão que assistimos há algum tempo a uma crise
que atinge a higidez do sistema penal brasileiro. Relações promíscuas vêm se
instalando entre o órgão que acusa e o que julga. Com todas as reservas
necessárias às generalizações, não são poucos os casos em que juízes e
promotores ultrapassam os lindes de suas atribuições para ajustarem as suas
convicções, estratégias e ações no afã de um objetivo comum, a condenação.
Essa
prática constitui uma aberração jurídica, que também denota graves falhas de
comportamento daqueles que, traindo seus compromissos de julgar e de acusar com
isenção, transformam suas funções em instrumentos de vingança, ódio e
intolerância.
Para
eles a lei processual prevê o impedimento ou a suspeição. Na primeira hipótese,
causas objetivas, como parentesco, retiram-lhes as condições de isenção para
julgar; na segunda, razões subjetivas, de natureza emocional, fazem-nos pender
para um dos lados do processo, retirando-lhes as condições de processar e de
julgar. Podemos estar nos encaminhando para o Estado punitivo, em substituição
ao Estado juiz, caso não se coíbam e se reprimam essas deploráveis praticas.
Juiz
isento, equidistante das partes, blindado quanto às repercussões midiáticas e
que mantenha sua consciência e a vontade submetidas somente aos fatos, à lei e
à sua consciência, é o que a sociedade espera da magistratura brasileira, como
guardiã do Estado Democrático de Direito.
Juiz não combate, juiz julga.
*Advogado
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