Guardei
por anos um bilhete que dizia: ‘Você é esquisito, mas me divirto com o que
escreve’
Exausto
de falar das angústias em que vivemos, mudo de assunto. Antes de entrar no
assunto ameno, nostálgico, registro que a Assembleia Legislativa de São Paulo
imprimiu em sua história uma nojenta e abjeta marca machista. Deu um leve
tapinha nas costas do deputado Cury: “Malandrinho, não faça mais isso”. Por que
esse tal Cury não apalpa os homens também, já que é seu costume? Se o “tapinha”
permanecer nunca mais votarei para deputado estadual. Uma questão me intriga:
como esse tal Cury e os que o defendem encaram diariamente suas mulheres e
filhas?
Segunda-feira,
Dia Internacional da Mulher, recebi de uma amiga de Araraquara, educada, culta,
um bilhete que me despertou a memória afetiva. Ela comanda milhares de
funcionários, mas teve tempo de sentar-se e, antes de mergulhar no dia a dia
pandemônico, lembrou-se de um momento da adolescência no Instituto de Educação
Bento de Abreu de Araraquara, onde gerações estudaram por décadas.
Ela: “Deixe-me te dizer que descobri os primórdios do WhatsApp. Foi no Ieba onde hoje é a Casa da Cultura. De manhã, científico. À tarde, quarta série ginasial. Na fresta da tampa da carteira com o apoio cabia um bilhete dobradinho. Aquilo era uma festa. Cada carteira tornava-se a caixa postal de bilhetes para correspondentes do outro horário. Uma alegria a ansiedade para ler a resposta. Subíamos a escada correndo. Eram escritos precursores de namoros. De manhã era classe masculina e à tarde, feminina
Até
que uma vigilante descobriu, quis mostrar “serviço”, recolheu os bilhetes e
levou para a diretoria. Foi um terror a reprimenda do diretor! Para quê? Tudo
tão inocente, tão alegre. Ele leu os bilhetes em público. Frustração geral!
Hoje penso: violar correspondência não é crime?
Sabujos,
servis puxa-sacos, sobrevivem ao longo do tempo. Aquele diretor, o Minhoto,
conheci bem, também estudei sob seu domínio. Mas teve outro, Juvenal Jacques,
que foi um terror. Andava armado. Impunha-se pelo medo. A certa altura, o
Raphael L. J. Thomaz, apelidado Dedão (nunca se soube por que), um aluno gênio,
presidente do Grêmio Acadêmico, tentou fazer uma campanha contra o homem,
denunciá-lo. Deu em nada. Talvez hoje, um episódio como o dos bilhetinhos
inocentes daquelas jovens daria o maior pau. Violação de correspondência, sim!
Ou tudo seriam risos?
Respondi
à amiga. Contei que estudei no mesmo prédio. Bilhetes? Fazíamos igual, era
tradição. Deliciosa. Todas as turmas faziam. Na primeira vez, deixávamos sem
saber se a classe no outro horário era feminina ou masculina. Uma vez, demos
com uma masculina. Recebemos de volta as maiores reações. De veadinho para
cima. Ou o infalível: E sua mãe? Mas a aula de química do professor Machadinho
era em sala especial, separada, no térreo. Tentamos ali. Tivemos sorte, a
próxima classe era feminina. Voltaram bilhetes cautelosos. Elas não sabiam quem
estava onde e o que era. Poderia ser um predador. As escritas continuaram. A
gente esperava para ver a classe entrar, mas como saber onde elas sentavam? Com
quem nos correspondíamos? A elas cabia revelar. Era um jogo de fantasias e
sonhos no recreio. Será esta? Aquela? A loirinha? A grandalhona tímida? A de
cabelos ruivos, a única ruiva da cidade? Foram nossos primeiros jogos tipo
“ligações perigosas”, o clássico romance de 1796 de Chordelos de Laclos, que
teve 11 versões para o cinema. Gostei de duas. A de Roger Vadim, que lançou
Brigitte Bardot, porém fez o filme com Jeanne Moreau. Depois a de Stephen
Frears, com Glenn Close e Michelle Pfeiffer.
Um
dos reis dos bilhetes era o Fenerek, amigo que admiro até hoje. Recebia
respostas engraçadas, devia ter um correspondente bem-humorado no outro
horário. Às vezes, os correspondentes abriam o jogo, se encontravam, marcavam
um cinema, uma festinha, um sorvete. Sorveterias eram pontos de encontro, a
conquista funcionava diante de uma tacinha de creme suíço, ou nata, limão, tamarindo.
Podem rir. Isso acabou, claro, agora temos o celular, as msg, os WhatsApp, até
fotografia vem junto. Dando sorte, um nude. Guardei por anos um bilhete que
dizia: “Você é esquisito, mas me divirto com o que escreve. Você é louco
demais”. Logo eu, um tonto? Ela nunca se identificou. Adoro pequenos mistérios
da vida.
*É jornalista e escritor, autor 'Zero' e 'Não verás País nenhum'
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