A
mudança de status ocorre, no caso, não porque o Judiciário passou a fazer
política, mas porque parou de fazê-la
A
elegibilidade de Lula rompeu a inércia da morte no país. Uma espécie de
nuvem de alienação, com seus miasmas de ignorância literalmente virulenta,
parecia turvar as consciências. Estávamos, desgraçadamente, nos acostumando a
noticiar sucessivos recordes de corpos, enquanto o Fanfarrão Minésio que ocupa
o Palácio do Planalto se dedicava a seus discursos homicidas, com convite ao
suicídio desassistido. Uma parte da classe política se dedicava às exclamações
do horror, impotente para ir além. A outra está a serviço do Planalto, como
ocorre sempre, em qualquer governo.
Lula
fez o seu discurso como potencial candidato em 2022 e operou de
imediato uma mudança em Brasília: meteu uma máscara na cara de Bolsonaro e de
seus ministros, já habituados ao ritual diário de genuflexão ao vírus. É
importante que tenhamos isso claro —e vai entrar para a história: o
presidente que aí está é o primeiro político que elegeu a doença e a morte como
aliadas.
Reconheça-se o prodígio: Bolsonaro conseguiu emprestar uma roupagem populista ao negacionismo, exercendo-o em nome dos supostos interesses da maioria. Afinal, medidas restritivas para tentar impedir uma tragédia de proporções bíblicas implicam perdas. Faz terrorismo econômico e empurra as pessoas para o túmulo, o sistema de saúde para o colapso, e o Brasil para o abismo.
Muita
coisa haverá ainda de ser escrita para demonstrar como chegamos aqui. Sim, é
verdade: não estivesse a corrupção entranhada no país; não fossem rotineiros os
caminhos paralelos para fazer negócios com entes do Estado; não estivesse o
aparelho estatal infiltrado por interesses corporativos e de classe; não fossem
as marcas, algumas quase atávicas, do nosso atraso, e não teria havido uma
Operação Lava Jato.
Montar,
no entanto, sob o pretexto de combater a corrupção, um estado paralelo para
tomar o poder de assalto —corroendo de maneira consciente e determinada as
bases do sistema de representação política e do devido processo legal— é tarefa
que caracteriza mais uma organização criminosa do que uma Liga da Justiça, como
foram caracterizados os bravos integrantes da Lava Jato, sob o óbvio e
ilegal comando de um então juiz.
O
Brasil dispõe de uma Constituição, de um Código de Processo Penal, de uma Lei
Orgânica da Magistratura. Ou bem se combatem os malfeitos segundo essas
balizas, ou ficamos sujeitos a vocações messiânicas —e a palavra aqui,
infelizmente, assume mais de um sentido por força dos desatinos em que
mergulhamos.
Não
é sem alguma amargura que escrevo que o reconhecimento da suspeição
de Sergio Moro e a constatação de que não era ele o juiz natural das ações
penais que contra Lula corriam na 13ª Vara Federal de Curitiba são questões que
não atinem apenas ao direito. Também dizem respeito ao caráter. Ou bem
assentimentos com a "ilegalidade em nome da lei" ou bem reconhecemos
o que está escancarado nos autos.
Volto
ao começo. É
evidente que a (re)emergência de Lula no cenário eleitoral desestruturou o
antigo status. Bolsonaro se dedicava a manter unidos os seus extremistas com
renovadas agressões à vida, à ciência e à lógica. A pletora de candidatos de
centro e centro-direita estava aí, à espera de algum autor. À esquerda e
centro-esquerda, havia uma certeza: Ciro Gomes e o ungido por Lula no PT não
caminhariam juntos.
O
quadro mudou. Bolsonaro não tem saída a não ser moderar o seu discurso. A
conversa de que Lula é seu antípoda ideal é tão verdadeira como a eficácia da
cloroquina no tratamento da Covid-19. A postulação de Ciro Gomes terá de voltar
os olhos, e isto já vinha acontecendo, para o centro e para a centro-direita. O
interesse nessa conversa é mútuo.
São
efeitos virtuosos, e eles não me surpreendem. O desastre em curso —e isso
inclui os quase 300 mil mortos— é consequência do assalto à política realizado
pelo Papol, o Partido da Polícia, ente de razão criado por setores do MPF, do
Judiciário, da PF e, infelizmente, da imprensa.
Que triunfe a lei. Se isso implicar a elegibilidade de Lula, deixem a escolha para o eleitor. Ninguém será obrigado a votar nele.
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