sexta-feira, 12 de março de 2021

Flávia Oliveira - Nunca mais a mesma vida

- O Globo

A pandemia completou um ano, e o Brasil já ultrapassou o total de 11 milhões de casos e 270 mil mortes. É um Rio Grande do Sul inteiro de doentes, com menor ou maior gravidade. Em óbitos, a população inteira de cidades como Volta Redonda (RJ), Barueri (SP), Juazeiro do Norte (CE). A esta altura, não há brasileiro que não tenha perdido ou consolado alguém enlutado pela Covid-19. Não há brasileiro que não tenha experimentado ou acompanhado o medo de quem recebeu diagnóstico positivo. Não há no país quem não tenha ficado sem trabalho, renda ou não saiba de gente em dificuldades financeiras. Não há brasileiro que não tenha doado ou recebido uma cesta de alimentos, um kit de higiene, uma quantia em dinheiro, um galão de água, um prato de comida.

Um ano atrás, torcíamos pelo fim de uma temporada de isolamento, doença e luto que duraria semanas, talvez meses. Ansiávamos pelo momento de retomar a vida como ela era — provavelmente, com pequenos ajustes. Do meu círculo, foram-se o neto do Luiz Sacopã, o avô e o padrasto do Felipe, a avó e o tio da Daiene, o pai da Fabricia, a mãe e o pai do Stanley, o sobrinho e a irmã da Ana Claudia, a mãe da Rachel, o pai da Telma, o pai da Juliana, o pai da Thux. Perdemos mestre Aldir Blanc; seu Ubirany, inventor do repique de mão e fundador do Grupo Fundo de Quintal; dona Nicette Bruno; o cacique Aruká, último homem indígena da etnia Juma. Está nítido que, quando possível o reencontro, a vida nunca mais será a mesma. Faltam muitos eles e elas em casa, na rua, no trabalho; nas aldeias e quilombos; em hospitais e universidades; nas cidades, nos estados, no país, mundo afora.

A devastação ultrapassou as piores previsões, e o Brasil encerra 12 meses de pandemia no pior momento em total de casos e mortes. UTIs estão em nível crítico de ocupação em 25 das 27 capitais, mapeou a Fiocruz. Faltam vacinas, evidência da desmoralização pelo Ministério da Saúde do Programa Nacional de Imunização, orgulho de outrora. Há pelo menos 13 milhões de desempregados no país; no Rio de Janeiro, 1,5 milhão. A FGV Social estima em 27,2 milhões o número de brasileiros abaixo da linha da pobreza (R$ 246). A fome avança; os preços dos alimentos subiram 19% desde março de 2020, quatro vezes a inflação; o auxílio emergencial foi interrompido. A vulnerabilidade social disparou a ponto de as organizações da sociedade civil reativarem ações humanitárias do ano passado, com menos recursos, ativistas exauridos, tal como os profissionais de saúde.

O Brasil é um país em frangalhos, entristecido, enlutado. E o culpado é Jair. Bolsonaro, presidente da República, um mês e meio após a decretação da pandemia, num simbólico 22 de abril, aniversário da chegada dos colonizadores, liderou uma reunião ministerial em que anunciou a intenção de armar a população —e armou. O titular do Meio Ambiente sugeriu passar a boiada no arcabouço regulatório — e passou. Dois ministros da Saúde foram trocados. O general Eduardo Pazuello, no cargo há dez dos 12 meses de pandemia, está 100% envolvido na tragédia, que mata um brasileiro por minuto neste março, segundo calculou o demógrafo José Eustáquio Alves, e fez do país ameaça global pelo espalhamento de variantes do vírus.

Ações equivocadas e omissões inaceitáveis trouxeram o Brasil aos dias críticos que ora testemunhamos. Perdemos um ano esperando que Palácio do Planalto e Ministério da Saúde assumissem o protagonismo devido no enfrentamento à crise sanitária. Erramos na estratégia, porque governo não há. Desde a virada do mês, convencidos do vazio, governadores articulam o Pacto Nacional em Defesa da Vida e da Saúde, que não prescinde de cientistas, empresariado e movimento social. Até aqui, 21 das 27 autoridades estaduais se comprometeram com medidas conjuntas para ampliar a vacinação, adotar medidas preventivas, aumentar a oferta de leitos. O governador em exercício do Rio de Janeiro está entre os seis que não assinaram o documento divulgado anteontem, embora Cláudio Castro administre um estado que já ultrapassou 34 mil óbitos por Covid-19 e 73% de utilização de leitos de UTI.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, aliado do presidente da República como o governador fluminense, enviou carta dramática ao embaixador da China, apelando por insumos e vacinas para a população brasileira. Ministros do Supremo Tribunal Federal têm cobrado providências da União. Mas o presidente da República e seu entorno só apareceram de máscara e viralizaram imagens de apoio à vacina depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sentenças anuladas pelo ministro Edson Fachin, fez discurso de estadista atacando a gestão do adversário na pandemia e antecipando a campanha eleitoral de 2022.

Foi Lula quem ensinou a Bolsonaro a importância do contraditório, algo que o capitão sempre repeliu em seu governo. O autoritarismo obtuso baniu Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich do Ministério da Saúde no primeiro bimestre da pandemia. Pelo fato político inesperado — que teve o efeito colateral indesejável de eclipsar a articulação de governadores, Legislativo, Judiciário e, por um par de dias, até os números da crise sanitária —, tomara o Brasil se convença de que a vida mora na democracia. Ditadores, autocratas, incompetentes produzem morte.

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