sexta-feira, 12 de março de 2021

Simon Schwartzman* - A legitimidade das instituições

- O Estado de S. Paulo

Os conluios pela impunidade de políticos têm predominado nas Cortes superiores

As decisões dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de anular os processos da Operação Lava Jato por erros formais de jurisdição ou eventuais comportamentos impróprios de juízes e promotores podem estar sendo tomadas com convicção, mas nem por isso deixam de contribuir para a desmoralização crescente dos nossos tribunais. Essa desmoralização que já se vinha acentuando com as sucessivas decisões de juízes “garantistas”, que, aos olhos da opinião pública, não passam de chicanas a favor dos processados por corrupção.

A noção de que sem procedimentos adequados não se podem condenar as pessoas tem como uma de suas inspirações a famosa decisão de “Miranda contra Arizona” da Corte Suprema dos Estados Unidos, de 1966, quando um criminoso confesso teve a sua sentença anulada porque o seu direito à defesa não havia sido devidamente respeitado. Essa decisão foi importantíssima para estabelecer limites ao comportamento muitas vezes preconceituoso, arbitrário e violento da polícia nos Estados Unidos, que, da mesma forma que no Brasil, tende a afetar, sobretudo, as minorias e as pessoas mais pobres. Comparado com seus benefícios, o fato de que alguns criminosos fiquem impunes é um pequeno preço a pagar.

O outro lado da moeda é que, para que ela continue valendo, a grande maioria dos criminosos precisa ser condenada. É a efetividade do sistema judiciário, e não o formalismo de suas decisões, que faz com que a sociedade respeite e considere legítima sua autoridade.

Para ser respeitado o Judiciário precisa atuar com bom senso e equilíbrio, garantindo as formalidades e punindo os criminosos, sem deixar que um lado predomine sobre o outro. No Brasil, por falta de uma política clara de defesa dos direitos civis, muitas pessoas sem recursos são presas e condenadas por supostos delitos, quando não mortas pela polícia, enquanto criminosos com mais recursos conseguem escapar pelas brechas formais da lei.

O Judiciário é temido, mas pouco respeitado, e isso serve de caldo de cultura para os movimentos de extrema direita contra os direitos humanos e pela impunidade da violência policial. O “mensalão”, primeiro, e a Operação Lava Jato, depois, trouxeram grande notoriedade e legitimidade à cúpula do Judiciário brasileiro, que se mostrou capaz, pela primeira vez na História, de julgar e condenar políticos e empresários poderosos, o deu também ao Supremo Tribunal legitimidade para administrar as crises institucionais, que se tornaram cada vez mais frequentes desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Essa legitimidade, no entanto, vem sendo corroída pela percepção, cada vez mais clara, de que, desde a decisão do Supremo Tribunal sobre o fim das prisões após condenação em segunda instância, são os conluios pela impunidade da classe política, da extrema esquerda à extrema direita, passando pelo notório “Centrão”, e não a defesa da legalidade dos procedimentos, que têm predominado nas Cortes superiores de Justiça.

É a legitimidade das instituições que distingue os Estados efetivos dos Estados falidos. Os Estados efetivos precisam ter o poder de usar a força para fazer cumprir as leis, mas só em último caso, e para isso é necessário que a autoridade dos governantes seja reconhecida e aceita como legítima.

Instituições são muito mais do que um conjunto de cargos, estatutos e a posse de determinados recursos, como armas, dinheiro ou conhecimentos. Para funcionar, elas precisam atuar como organismos vivos, em que cada participante se sinta e atue como parte de um todo mais amplo. E dependem também de um ambiente externo receptivo, em que suas práticas sejam reconhecidas como benéficas, e não predatórias.

Isso vale tanto para o Judiciário quanto para os demais Poderes, assim como para empresas, igrejas, sistemas de pesquisa, ensino, redes de saúde, sindicatos e organizações profissionais.

Instituições efetivas podem também existir em Estados autoritários, à custa de maior coerção, mas a democracia não pode subsistir sem instituições vigorosas. O grande desafio das sociedades democráticas é que elas precisam preservar e fortalecer suas instituições levando ao mínimo o uso da força, incluindo o máximo de pessoas, respeitando as diferenças e garantindo as liberdades.

Isso requer um consenso básico e o trabalho constante de pessoas influentes de diferentes setores – a chamada elite – a favor de seus valores centrais. Não é uma tarefa fácil e quando ela fracassa abre espaço para o populismo, cujo principal é resultado, é, justamente, o desmonte das instituições – o Judiciário se transforma em instrumento de poder ou de impunidade, os cargos executivos são apropriados por famílias e grupos poderosos, as empresas se transformam em quadrilhas, a educação se transforma em ideologia, o conhecimento científico e técnico é substituído pela superstição e pelas fake news.

É uma rampa inclinada, na qual é muito fácil cair, e muito difícil se levantar.

*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências

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