quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Vera Magalhães: Campanha no Bolsoverso

O Globo

Uma das mais bonitas histórias que compõem a mitologia em torno de Pelé é de um jogo amistoso com aquela lendária equipe do Santos, realizado em 1969 na Nigéria, que fez com que fosse decretado um cessar-fogo de um dia na Guerra de Biafra. “Só o Santos parou a guerra/com Rei Pelé bi-mundial”, diz um grito de guerra da torcida santista.

A julgar pelos animadores de outra torcida, a bolsonarista, não mais. Produtores de memes e narrativas da bolsolândia passaram o dia associando, na brincadeira, a ida de Bolsonaro a Moscou com as indicações do governo Vladimir Putin de que poderia retroceder em seus avanços sobre a Ucrânia.

Um dos que puxaram o cordão das piadas sem graça foi o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que, defenestrado do posto porque estava queimando demais o filme até para os padrões desta gestão, agora ocupa seu tempo tentando fazer média com a ala mais sectária do bolsonarismo para disputar algum cargo eletivo em outubro.

Questionado pelo papel ridículo, quis pespegar a “imbecilidade” em quem a apontou, e não em quem a produziu, no caso, ele próprio.

Salles, como sempre arrogante, diz que é óbvio que se trata de uma brincadeira. De fato, no plano “limpinho” em que ele postou os memes segundo os quais a visita ainda nem iniciada do presidente brasileiro a Moscou teria algo a ver com o recuo de Putin, as chances de isso encontrar alguma aderência são pequenas, quase nulas.

Mas, no submundo dos grupos de WhatsApp e do Telegram, sem nenhum controle ou possibilidade de contraponto por parte da imprensa, de analistas internacionais ou de quem quer que seja, os relatos do “sucesso” da viagem de Bolsonaro ganham ecos de verdade e neutralizam uma das constatações que mais incomodam o entorno do presidente: a de seu isolamento internacional e da imagem péssima de que goza junto às democracias ocidentais.

Nesses ambientes, a data da viagem de Bolsonaro, as razões do conflito russo-ucraniano, os alinhamentos dos demais países nessa tensão ou a agenda que o brasileiro cumprirá na curta estadia cercada de cuidados sanitários passam longe. Vale a narrativa sem nenhum contexto segundo a qual Bolsonaro é admirado pelo líder “conservador” de uma grande potência e tem bom trânsito mesmo quando as coisas não vão bem.

Pouco importa que o Brasil não tenha absolutamente nada a ver com o desfecho da escalada retórica e militar na região.

Esse mundo paralelo em que se constrói, não de hoje, a reputação de Bolsonaro como mito pouco foi afetado pela realidade que mostra imenso desgaste do presidente pela condução desastrosa da pandemia, pelo desemprego galopante e pela inflação descontrolada. A primeira seria culpa de governadores e dos defensores da vacina. As duas últimas, também dos governadores, pelo “fecha tudo” da pandemia.

Trata-se do Bolsoverso, para usar uma referência bastante em voga dadas as muitas obras literárias e audiovisuais que exploram o tema dos multiversos.

Nada indica que haverá sucesso nos esboços de tentativa da Justiça Federal de penetrar nesse mundo invertido e de regulamentar de alguma maneira seu uso como propagador de desinformação, que vai dos memes e “brincadeiras” apenas pretensamente inocentes a mentiras e discursos de ódio pesados, muitas vezes criminosos contra adversários políticos e instituições como o próprio Judiciário e a imprensa.

As eleições de 2018 mostraram apenas um trailer desse filme, que vem sendo escrito ao longo dos anos de mandato do capitão, foi tangenciado em reportagens e nos inquéritos do Supremo Tribunal Federal, mas está longe de ser conhecido e combatido. Enquanto pessoas como Salles “brincam” na superfície, esse embuste narrativo chega às senhoras do zap como feito heróico do candidato que mais sabe fazer uso dessas ferramentas no Brasil.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Marilyn Monroe,dizem,foi outra que,com sua beleza fulminante,parou uma guerra.