Folha de S. Paulo
Putin tem razão ao alegar que as promessas
da Otan não foram honradas
O mapa
da expansão da Otan pipocou
em todos os lugares, geralmente por iniciativa dos papagaios de Putin,
engajados na justificação da agressão à Ucrânia. No papel, impressiona: desde
1999, a aliança ocidental recebeu a adesão de 14 países, entre ex-integrantes
do bloco soviético e as três antigas repúblicas soviéticas do Báltico.
De fato, porém, a Otan ampliada é, como
diria Mao Tsé-tung, um tigre de papel.
Putin tem razão ao alegar que as promessas feitas à URSS em 1990 não foram honradas. Na hora da reunificação alemã, líderes americanos, britânicos e alemães asseguraram a Gorbachev que, com exceção da Alemanha Oriental que desaparecia, a Otan não avançaria nenhum milímetro rumo a leste.
Eram firmes garantias verbais, embora nunca
vertidas em tratados. Mas, depois das guerras na Iugoslávia, os EUA mudaram de
ideia, em parte devido à pressão dos países do antigo bloco soviético que
almejavam a auréola de segurança oferecida pela aliança militar.
À frente de uma Rússia cambaleante, Boris
Yeltsin cedeu. Por
meio do tratado de cooperação Otan-Rússia, de 1997, a aliança encetou sua
expansão. Foi um erro histórico do Ocidente, mas apenas a conclusão do
equívoco maior, anterior, de abandonar o governo russo reformista à própria
sorte, rejeitando a ideia de um resgate econômico nos moldes do Plano Marshall.
Putin nasceu no berço moldado pelo duplo
engano. Mas o mapa ilude. Mao qualificou a bomba atômica americana como tigre
de papel e, em 1956, usou a mesma alcunha para ironizar o imperialismo
americano. A Otan ampliada merece mais o epíteto.
A Alemanha é, junto com a URSS, o motivo
que levou à criação da Otan, em 1949. Contudo, nos 40 anos que transcorreram
desde a reunificação, as forças armadas alemãs sofreram uma miniaturização. Dos
310 mil soldados, sobram 180 mil. Dos 4,7 mil tanques, restam 300. Dos 390
aviões de guerra, 230, e dos 130 navios, 60. Submarinos? Eram 18; agora são seis.
O orçamento de defesa alemão desabou de US$
60 bilhões em 1990 para US$ 34 bi em 2005 e só voltou a crescer nominalmente
após a anexação
russa da Crimeia, em 2014, alcançando US$ 52 bi em 2020. Mesmo assim, no
período inteiro, retrocedeu de 2,6% do PIB para 1,3%. A tendência repete-se nos
demais países europeus da Otan.
Na França, os dispêndios militares passaram
de 2,8% do PIB em 1990 para menos de 1,9% em 2019. No Reino Unido, de 3,6% para
1,7%. O componente europeu da Otan é, hoje, mais vasto territorialmente mas
mais fraco militarmente.
O tratado Otan-Rússia proibiu o
deslocamento de forças militares significativas para os novos integrantes da
aliança. Isso foi honrado. A segurança dos 14 países incorporados repousa não
sobre tropas ou equipamentos bélicos, mas na linha imaginária traçada pelo
artigo 5º da carta da aliança ocidental, que garante a "defesa mútua"
(leia-se: a defesa providenciada pelos EUA) em caso de agressão externa. A
expansão representou, sobretudo, um gesto político.
Putin utilizou o tema da Otan como pretexto
para a agressão –e seu álibi passou a ser repetido por incontáveis analistas
simpáticos. Espertos, eles não dizem que a hipótese de ingresso da Ucrânia na
Otan foi congelada desde o ataque russo de 2014, concluído pela anexação da
Crimeia e pelo estabelecimento dos enclaves
separatistas do Donbass.
Nem que nada mudou daquele momento até a invasão russa em curso.
Entretanto, quando incendeia um país
independente inteiro, o chefe do Kremlin insufla vida numa Otan que, nas
palavras de Macron, vegetava em "morte cerebral". A Alemanha reverteu
em três dias uma política externa de 30 anos. Os países europeus anunciam
escaladas de gastos militares para bem além dos 2% do PIB, a meta almejada pela
Otan mas não atingida desde o fim da Guerra Fria. O tigre de papel experimenta
uma metamorfose, recuperando carne, osso e músculos.
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