sábado, 12 de março de 2022

Eduardo Affonso: Imagens que gritam

O Globo

A menina de 9 anos corre, nua e descalça, de braços abertos, gritando de dor, as costas queimadas por napalm. Outra menina, de uns 5 anos — a esqualidez não permite avaliar bem sua idade — , está no chão, também nua, o corpo pendido para a frente, observada de perto por um abutre. O menino de 3 anos, camiseta vermelha, calças azuis, sapatinhos bem amarrados, jaz de bruços, o rosto tocado pelas ondas.

Quem viu essas imagens não as esquecerá. Kim Phuc, vietnamita, fugia de um bombardeio, em 8 de julho de 1972. A sudanesa, cujo nome não se sabe, estava à beira da inanição e tomava fôlego, a caminho de um posto de saúde, em 11 de março de 1993. Aylan Kurdi, sírio, cruzava o Mediterrâneo numa viagem desesperada, até a madrugada daquele 2 de setembro de 2015.

As fotos não puseram fim ao horror no Vietnã, no Sudão ou na Síria, mas mostraram ao mundo a tragédia numa escala que qualquer ser humano consegue apreender. Milhões de vítimas são algo impalpável — uma criança ferida, morta ou à morte é um filho, um sobrinho, somos nós mesmos.

Hoje, com a guerra transmitida ao vivo, não só por jornalistas, mas por invasores e invadidos, algozes e vítimas, acompanhamos o clarão das explosões e o tremor que se segue, ouvimos os gritos. Tanto dos ucranianos que tentam escapar de seus agressores quanto dos que, na Rússia, desafiam a tirania — uns com a vida em risco, outros arriscando a liberdade.

Aqui, longe do front, travamos batalha menos sangrenta — a da manipulação. Ao contrário do que acontece com os russos, privados de informação independente (eles já usufruem os benefícios do “controle social da mídia”...), convivemos com a distorção autoinfligida.

Para relativizar as barbaridades cometidas pelo exército de Putin, dá-lhe whataboutism (“e o Iêmen?”, “e a invasão do Afeganistão?”), como se as analogias fossem cabíveis, como se erros passados chancelassem todos os erros por vir. E não fosse possível deixar passar a oportunidade de ostentar superioridade moral e intelectual (“é complexo...”, “vocês só veem um recorte; eu vejo o todo”). Ou de puxar brasa para outra sardinha (“os refugiados africanos não foram recebidos com a mesma solidariedade”).

Como escreveu o jornalista Rodrigo da Silva, “whataboutism é um método de propaganda que tem como objetivo diminuir o impacto de uma crítica manipulando a atenção para um adversário do alvo da crítica”. Não se trata apenas de uma falácia, mas de uma narrativa ideológica. De não se importar com Kims e Aylans — figurantes nessa cena, ovos quebrados para a omelete da geopolítica.

A idosa sozinha, numa cadeira de rodas, à espera de quem a leve para um abrigo, em Irpin. A janela protegida por uma barricada de livros; a criança que, de mãos espalmadas no vidro do trem, se despede do pai, em Kiev. A jovem grávida que desce, ensanguentada, as escadas da maternidade semidestruída em Mariupol. Nenhuma dessas imagens dará fim à guerra, nem converterá um “uorabautista”. Mas servirá para que, no futuro, saibam que droga de seres humanos éramos em 1972, 1993, 2015, 2022. 

 

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