O Globo
A menina de 9 anos corre, nua e descalça,
de braços abertos, gritando de dor, as costas queimadas por napalm. Outra
menina, de uns 5 anos — a esqualidez não permite avaliar bem sua idade — , está
no chão, também nua, o corpo pendido para a frente, observada de perto por um
abutre. O menino de 3 anos, camiseta vermelha, calças azuis, sapatinhos bem
amarrados, jaz de bruços, o rosto tocado pelas ondas.
Quem viu essas imagens não as esquecerá.
Kim Phuc, vietnamita, fugia de um bombardeio, em 8 de julho de 1972. A
sudanesa, cujo nome não se sabe, estava à beira da inanição e tomava fôlego, a
caminho de um posto de saúde, em 11 de março de 1993. Aylan Kurdi, sírio,
cruzava o Mediterrâneo numa viagem desesperada, até a madrugada daquele 2 de
setembro de 2015.
As fotos não puseram fim ao horror no Vietnã, no Sudão ou na Síria, mas mostraram ao mundo a tragédia numa escala que qualquer ser humano consegue apreender. Milhões de vítimas são algo impalpável — uma criança ferida, morta ou à morte é um filho, um sobrinho, somos nós mesmos.
Hoje, com a guerra transmitida ao vivo, não
só por jornalistas, mas por invasores e invadidos, algozes e vítimas, acompanhamos
o clarão das explosões e o tremor que se segue, ouvimos os gritos. Tanto dos
ucranianos que tentam escapar de seus agressores quanto dos que, na Rússia,
desafiam a tirania — uns com a vida em risco, outros arriscando a liberdade.
Aqui, longe do front, travamos batalha
menos sangrenta — a da manipulação. Ao contrário do que acontece com os russos,
privados de informação independente (eles já usufruem os benefícios do
“controle social da mídia”...), convivemos com a distorção autoinfligida.
Para relativizar as barbaridades cometidas
pelo exército de Putin, dá-lhe whataboutism (“e
o Iêmen?”, “e a invasão do Afeganistão?”), como se as analogias fossem
cabíveis, como se erros passados chancelassem todos os erros por vir. E não
fosse possível deixar passar a oportunidade de ostentar superioridade moral e
intelectual (“é complexo...”, “vocês só veem um recorte; eu vejo o todo”). Ou
de puxar brasa para outra sardinha (“os refugiados africanos não foram
recebidos com a mesma solidariedade”).
Como escreveu o jornalista Rodrigo da
Silva, “whataboutism é
um método de propaganda que tem como objetivo diminuir o impacto de uma crítica
manipulando a atenção para um adversário do alvo da crítica”. Não se trata
apenas de uma falácia, mas de uma narrativa ideológica. De não se importar com
Kims e Aylans — figurantes nessa cena, ovos quebrados para a omelete da
geopolítica.
A idosa sozinha, numa cadeira de rodas, à
espera de quem a leve para um abrigo, em Irpin. A janela protegida por uma
barricada de livros; a criança que, de mãos espalmadas no vidro do trem, se
despede do pai, em Kiev. A jovem grávida que desce, ensanguentada, as escadas
da maternidade semidestruída em Mariupol. Nenhuma dessas imagens
dará fim à guerra, nem converterá um “uorabautista”. Mas servirá para que, no
futuro, saibam que droga de seres humanos éramos em 1972, 1993, 2015,
2022.
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