sábado, 28 de maio de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

É cedo para dizer que não haverá segundo turno

O Globo

A pesquisa Datafolha divulgada nesta semana confirmou a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato do PT à Presidência, com 48% das intenções de voto, seguido pelo presidente Jair Bolsonaro, do PL (27%). O resultado deu a Lula 54% dos votos válidos e levou os mais apressados a especular se a eleição estaria definida já no primeiro turno, no dia 2 de outubro.

É, claro, um cenário possível. Mas longe de ser provável, muito menos certo. Faltando mais de quatro meses para o pleito, ainda antes do início oficial da campanha, é impossível fazer qualquer aposta com base numa única pesquisa. Pesquisa não é previsão. Representa apenas um retrato do momento em que ela é feita. Os dados e fatos disponíveis até aqui sugerem justamente o contrário: o cenário mais provável é haver segundo turno em 30 de outubro para definir o vencedor. E é melhor que seja assim.

Quando a disputa se afunila nos dois finalistas, os candidatos são forçados a expor mais suas ideias, e os eleitores têm chance de avaliá-las melhor. É na reta final da campanha que costumam ser seladas alianças que darão base à formação dos futuros governos. Elas tornam as plataformas dos candidatos mais representativas da maioria da população. Ainda que o voto no segundo turno possa ser sustentado pelo sentimento de barrar a vitória deste ou daquele candidato, ele traz inerentemente mais legitimidade aos planos que o vencedor apresenta ao país.

É incontestável que 2022 tem suas peculiaridades. Desde a redemocratização, é a primeira disputa em que um dos candidatos é um presidente com extenso histórico de agressões às instituições democráticas, que ameaça não aceitar o resultado caso seja derrotado, insuflar apoiadores a protestar ou, pior ainda, tentar dar um golpe. É por isso que alguns cientistas políticos, como Steven Levitsky, da Universidade Harvard, defendem que populistas da estirpe de Bolsonaro precisam ser derrotados logo no primeiro turno, para não dar margem a choradeiras ou loucuras.

Mas esse é um raciocínio falho, por supor necessariamente o pior cenário. E certamente favorece o candidato de oposição mais bem colocado nas pesquisas: Lula. Petistas investem na vitória no primeiro turno como se tentassem obter uma espécie de cheque em branco para implantar sua agenda mais radical — e equivocada —, em particular nos temas econômicos. Naturalmente, esse movimento desperta reações e faz reavivar o sentimento antipetista, forte em setores da sociedade.

Ao mesmo tempo, a desistência do tucano João Doria aos poucos aglutina uma candidatura de terceira via em torno da emedebista Simone Tebet. A viabilidade eleitoral dela começará a ser testada para valer só agora que as dúvidas se dissipam. É o momento em que muitos eleitores que estão com Lula ou Bolsonaro por falta de opção poderão refletir e escolher outra alternativa.

Para evitar deserções e liquidar a fatura no primeiro turno, Lula precisa fazer acenos ao centro. Seu movimento tem de ir além da mera indicação de um ex-tucano como vice. Até agora, porém, ele tem sido ambivalente e preferido eletrizar sua base à esquerda. Bolsonaro também tem mantido a estratégia de pregar para o público fiel. Só que ele, em contrapartida, tem interesse na ascensão de Tebet para garantir que haja segundo turno. O terreno ainda é movediço, e o jogo que parece consolidado pode trazer surpresas.

Decisão do STF de manter Lei Seca é alento contra insensatez no trânsito

O Globo

A decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) de manter a Lei Seca e a punição para motoristas que se recusam a soprar o bafômetro contribui enormemente para aumentar a segurança nas estradas — ou, ao menos, para não deixar que ela se deteriore ainda mais. A Lei Seca se mostrou bem-sucedida em desestimular a perigosa combinação entre direção e álcool, fórmula propícia a tragédias. Não se poderia jogar fora uma experiência que vem dando certo, apesar das resistências de alguns condutores.

Um dos argumentos de quem é contra a obrigatoriedade do bafômetro é que o cidadão não pode produzir provas contra si mesmo. Os ministros do Supremo entenderam, porém, que as punições previstas na lei de trânsito são apenas administrativas, e não penais. Portanto, para quem se recusar a fazer o teste, ficam mantidas a multa de R$ 2.934,70, a suspensão do direito de dirigir e a apreensão do veículo.

Os ministros fizeram bem em manter a tolerância zero com motoristas que bebem. O presidente do STF, Luiz Fux, afirmou que “não existem quantidades objetivamente seguras para o consumo do álcool”. É acertada também a decisão de manter a proibição da venda de bebidas alcoólicas nas estradas federais— apenas o ministro Nunes Marques votou contra. Obviamente, a restrição não impede que o motorista leve bebida de casa ou que procure bares nas imediações das rodovias, mas pelo menos desestimula o consumo.

A embriaguez ao volante ainda é problema sério não só nas estradas federais e estaduais, mas também nas vias municipais. Cerca de 40% dos acidentes estão relacionados à bebida alcoólica, segundo o Instituto de Segurança no Trânsito. Apesar das restrições, há motoristas que insistem na prática criminosa. No domingo, um deles, segundo a polícia embriagado e sem habilitação, atropelou cinco crianças que atravessavam na faixa de pedestres em Ceilândia, Distrito Federal. Ao menos três continuavam ontem na UTI.

Esse tipo de aberração não será reprimido sem o rigor da lei, feita para reduzir os índices absurdos de mortes nas estradas. A Lei Seca presta um serviço inestimável à sociedade. Foi graças a essas operações que o Rio conseguiu estancar as mortes de jovens após as baladas do fim de semana. As ruas da cidade guardam as marcas desse tempo: estão cheias de pequenos santuários em memória das vítimas. A mudança de comportamento é visível.

A decisão do Supremo terá repercussão geral e será adotada nos demais tribunais. Claro que a Lei Seca por si só não resolve o problema da embriaguez ao dirigir. Mas ajuda, principalmente num momento em que o presidente Jair Bolsonaro tenta flexibilizar o Código de Trânsito e retirar radares das estradas. Quis até acabar com a obrigatoriedade de cadeirinhas infantis, medida estapafúrdia anunciada na posse. Quem pode ser contra maior segurança no trânsito? O atropelamento de crianças no Distrito Federal mostra de forma dolorosa que não está na hora de afrouxar regras, tampouco de aliviar punição a motoristas que põem em risco a própria vida e a dos outros.

Embate federativo

Folha de S. Paulo

No afã de baixar preços, governo e Câmara agravam conflito com estados e cidades

Em ano eleitoral, cresce a pressão política por soluções casuísticas para problemas reais da população. A mais nova investida é a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de um projeto de lei complementar destinado a tributação estadual sobre combustíveis, energia elétrica, gás natural, comunicações e transporte coletivo.

A peça, que vai ao Senado, elenca tais itens como essenciais, o que resultará na redução da alíquota do ICMS, conforme jurisprudência já estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal. Em vez da incidência atual, que pode superar 30% do preço em vários estados, a taxa passaria a 17%, reduzindo preços aos consumidores.

Segundo estimativas do Comsefaz, que reúne secretários estaduais da Fazenda, a queda anual de receita ficaria entre R$ 64,2 bilhões e R$ 83,5 bilhões. O impacto no litro da gasolina seria próximo a R$ 0,70 em média, mas dependerá da alíquota atual em cada estado.

Como sempre ocorre, a forte oposição dos governadores ameaça jogar parte da conta para o governo federal, que terá de compensar neste ano as perdas que superarem 5% da arrecadação.

Para ampliar a controvérsia, o presidente Jair Bolsonaro (PL) sinaliza que pode vetar o impacto para a União, por considerar que estaria sobrando dinheiro nos cofres dos demais entes federativos.

É inegável que a tributação sobre bens e serviços em geral é excessiva no país. Os setores ora atingidos são de fácil cobrança e podem representar mais de metade da coleta de impostos dos estados. Não é surpresa, assim, que governadores se ancorem nesses poucos produtos e resistam a qualquer tentativa de corte das alíquotas.

Entretanto o problema não pode ser resolvido com medidas apressadas que exacerbam o já agudo conflito federativo. Como de costume no governo Bolsonaro, e também por causa da liderança afoita que não raro resulta em legislação de má qualidade na Câmara, a opção é pelo improviso.

Um debate abalizado sobre os limites da autonomia tributária estadual, de um lado, e das responsabilidades da União, de outro, é fundamental —e se torna mais urgente no contexto atual, em que deixou de existir disciplina de análise e prudência na ação.

Tamanho embate entre União, estados e municípios, que não aceitarão a redução de sua cota de repasses do ICMS, é desproporcional ao impacto nos preços, que pode ser diluído rapidamente —em especial no caso dos combustíveis, que seguem cotações internacionais.

A aflição da população não pode ser desconsiderada, mas as soluções passam por boa gestão econômica e entendimento político, que não foram vistos no episódio.

Truculência e inépcia

Folha de S. Paulo

Morte por asfixia expõe despreparo de polícia que ganhou impulso com Bolsonaro

Os agentes que detonaram uma bomba de gás lacrimogêneo dentro de uma viatura e mataram Genivaldo de Jesus Santos por asfixia sabiam o que queriam quando o jogaram no porta-malas do veículo.

Imagens produzidas por testemunhas que filmaram a cena com seus celulares mostram que o homem se agitava enquanto ficava sufocado com a fumaça e os policiais o forçavam a recolher as pernas.

É possível ouvir os gritos da vítima com nitidez em um dos vídeos, que registra sua agonia até o momento em que o corpo inerte deixou de opor resistência e os agentes fecharam a porta traseira.

Santos, 38, morreu na última quarta (25) em Umbaúba (SE), a 100 quilômetros de Aracaju, após ser parado pela Polícia Rodoviária Federal por dirigir uma motocicleta sem o capacete obrigatório.

Três agentes participaram da brutalidade, e caberá agora à Polícia Federal apurar responsabilidades. Não faltam testemunhas do episódio, e há fartas evidências para confrontar as canhestras explicações oferecidas pelas autoridades nas primeiras horas.

Os policiais disseram que o uso da força e o gás lacrimogêneo foram necessários para conter Santos após a abordagem. As imagens mostram que ele foi revistado sem reagir. Antes de ser jogado na viatura, foi imobilizado no chão e teve mãos e pés amarrados.

Os agentes afirmaram que o homem sofreu um possível mal súbito quando era conduzido à delegacia e por isso o levaram ao hospital. Médicos que receberam Santos disseram que ele chegou morto. O laudo oficial apontou asfixia mecânica como causa da morte.

Chocante, o amadorismo dos policiais envolvidos na ação torna-se alarmante quando se constata que sua corporação ganhou impulso significativo após a chegada de Jair Bolsonaro (PL) ao poder.

Criada com a missão de patrulhar as rodovias federais, ela passou a fazer barulho com apreensões de drogas e produtos contrabandeados e teve suas atribuições ampliadas, recebendo recursos para participar de operações ostensivas e investigações ao lado de outras forças de segurança.

A mais recente dessas ações ocorreu na terça (24), quando membros do batalhão de elite da Polícia Militar do Rio e agentes da PRF foram a uma comunidade da cidade, a Vila Cruzeiro, supostamente à procura de traficantes, e 23 pessoas morreram. O despreparo profissional anda junto com a truculência.

Selvageria institucional

O Estado de S. Paulo

Pior do que a transformação de uma viatura em câmara de gás é a tentativa da polícia de justificar essa atrocidade

“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, disse Joaquim Nabuco. Parafraseando-o, pode-se dizer que os porões da ditadura permanecerão por muito tempo como um traço persistente de parte do aparato de segurança do Estado brasileiro. Muito além da selvageria de três policiais, gravada em chocantes imagens que rodaram o mundo, o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos em uma câmara de gás improvisada em uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Sergipe expõe a conivência de estruturas de poder, até o seu topo, com o desprezo pela lei e pela humanidade.

Já imobilizado – depois de, segundo os policiais, ter reagido agressivamente à abordagem –, Santos, que estava desarmado, foi jogado na parte de trás da viatura e asfixiado com gás lacrimogêneo. 

O episódio em si já é suficientemente revoltante, mas a reação da PRF conseguiu ser ainda pior. Em lugar de reconhecer a barbárie registrada em incontestáveis imagens e de pedir desculpas à família da vítima e ao País, a autoridade policial entendeu que era o caso de justificar a ação de seus agentes. Num misto de crueldade e escárnio, a PRF declarou, em nota oficial, que “foram empregadas técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo”.

A menos que o superintendente da PRF aponte em que seção dos manuais da corporação constam essas “técnicas” desumanas, ele deve ser imediatamente afastado. Os policiais “transformaram um instrumento de contenção em área aberta (gás lacrimogêneo) em uma prática que pode ser classificada como tortura, porque (Santos) já estava contido”, disse ao Estadão Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nem era preciso a opinião de um especialista. As imagens falam por si.

Santos não oferecia nenhum risco real aos policiais. Ademais, sofria de transtorno mental e tentou dizer isso aos policiais, mas foi ignorado. No entanto, mesmo que fosse um perigoso criminoso a ameaçar a integridade dos agentes, Santos não poderia ter sido tratado daquela maneira. O Estado não pode simplesmente assassinar suspeitos desarmados e rendidos; sua tarefa é prendê-los e levá-los a julgamento. É isso o que diz a lei.

Essa mesma lei havia sido ignorada no dia anterior, quando uma operação policial na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, deixou 25 mortos – nenhum deles da polícia. Mesmo que todos fossem bandidos – o que, já se sabe, não era o caso –, o morticínio já seria, por si só, evidência de que a operação foi malsucedida.

Mas esse caso do Rio, como o de Sergipe, confirma que o valor da vida caiu drasticamente com o triunfo da necropolítica bolsonarista. O presidente Jair Bolsonaro tratou logo de congratular os “guerreiros” da polícia por sua ação na Vila Cruzeiro. Das 197 palavras de sua mensagem radiante no Twitter, dedicou apenas quatro à família da mulher morta por um tiro de fuzil dentro de casa. Como não há imagens dessa ação, será a palavra da corporação policial contra a dos poucos cidadãos comuns que ousarem questionar os procedimentos da polícia.

Ou seja, não fosse pelas imagens registradas pela população local, o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos já teria se dissolvido nas estatísticas como mais uma morte em “confronto”. Não é à toa que bolsonaristas defendem o fim das câmeras nos uniformes policiais, como as adotadas em São Paulo, pois esse equipamento obriga a polícia a agir dentro da lei. Sem elas, os cidadãos ficam à mercê do arbítrio de policiais nem sempre comprometidos com padrões mínimos de civilidade.

“Existem dois currículos nas forças de segurança”, disse à Rádio Eldorado Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado da PM de São Paulo. “Um, oficial, escrito pelas normas (...) que tutelam os direitos humanos, as garantias constitucionais e a preservação da vida. E existe um outro ‘currículo oculto’ e cultural, que é o que existe no dia a dia, que ensina aos alunos a promover a segurança pública dentro de uma lógica de eliminação do inimigo.” É preciso impedir, de uma vez por todas, que esse estímulo à barbárie, exatamente como nos piores momentos da ditadura militar, continue a animar o guarda da esquina. 

A guerra domina Davos

O Estado de S. Paulo

A tragédia humanitária e os efeitos internacionais da invasão da Ucrânia pela Rússia dominaram os debates em que a atuação brasileira foi marginal

Sem aparecer, Vladimir Putin, senhor das armas, pautou e dominou a reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos. A guerra foi o grande tema da semana. Políticos e especialistas discutiram a devastação da Ucrânia, as novas ameaças à segurança internacional e seus efeitos econômicos para dezenas de países. Uma guerra havia entrado na pauta em janeiro de 2003, quando o secretário de Estado americano, Colin Powell, tentou explicar e justificar o próximo grande lance de seu governo, a invasão do Iraque. Naquela ocasião, o Fórum já se havia consagrado como templo da globalização e da integração, com pouco espaço para discussão sobre armas. O autocrata russo conseguiu unir os dois temas, o militar e o econômico, na programação de Davos.

A semana foi aberta com a participação virtual do presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski. Ele agradeceu a ajuda internacional e reafirmou a disposição de continuar, com os meios fornecidos por outros países, combatendo as tropas invasoras. Foi como se o líder ucraniano estivesse dando o tom a uma orquestra. A sequência foi uma série de pronunciamentos sobre as necessidades impostas pelo conflito.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, acusou o governo russo de usar a fome e o controle de cereais como armas de guerra. Pediu cooperação global contra a “chantagem da Rússia” e defendeu maior investimento militar na Europa. Propôs também maior empenho na transição para um padrão energético menos dependente de petróleo e gás e, portanto, da importação de insumos de origem russa. União contra as novas ameaças foi também a bandeira levantada pelo primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, e pelo secretário-geral do Tratado da Organização do Atlântico Norte (Otan), Jens Stoltenberg.

O primeiro grande apelo a favor da ordem global veio da equipe do Fundo Monetário Internacional (FMI), liderado pela diretora-gerente da entidade, Kristalina Georgieva. Somada à pandemia da covid-19, a invasão da Ucrânia combinou duas crises, “devastando vidas, derrubando o crescimento econômico e aumentando a inflação”, alertou um documento divulgado pouco antes de começar a reunião. A guerra agravou problemas já presentes nos mercados e ampliou o risco de uma “fragmentação geoeconômica”, segundo o texto apresentado pelo Fundo.

O alerta do FMI constituiu, talvez, a mais articulada expressão das preocupações levadas ao Fórum por líderes nacionais, economistas, empresários e representantes de organizações multilaterais. É preciso evitar o desmonte das cadeias internacionais de suprimentos, evitar novos entraves aos fluxos de mercadorias, de serviços e de capitais e conter as tendências, já observadas em vários países, de ampliação de barreiras a exportações e importações. Desde o começo da guerra na Ucrânia, informou o FMI, cerca de 30 governos limitaram o comércio de alimentos, energia e de outros itens básicos. Tudo isso agrava, seria fácil acrescentar, as tendências já observadas de redução do crescimento econômico.

Do lado oficial, a contribuição brasileira ao debate foi praticamente nula, como tem sido desde 2019, início do mandato do atual presidente. Convidado naquele ano para uma apresentação especial, o presidente Jair Bolsonaro foi incapaz de preencher dez minutos com uma exposição sobre planos de governo, embora dispusesse de meia hora.

A administração federal foi representada no Fórum, neste ano, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Como em outras ocasiões, o ministro pouco se envolveu nos debates mais importantes, limitando-se às bravatas habituais sobre o estado e as perspectivas da economia brasileira.

Como Putin, Bolsonaro faltou à reunião, mas foi muito menos lembrado que o autocrata russo. Sem representação de Moscou, também sumiu do centro de Davos a Casa da Rússia, tradicionalmente montada durante as sessões do Fórum. Como substituição, um empresário ucraniano instalou uma exposição dos crimes de guerra atribuídos aos invasores. Com a ausência de Putin, também a paisagem da cidade foi afetada. 

O desafio da formação médica

O Estado de S. Paulo

Incapaz de definir política nacional, MEC autoriza acréscimo de cem vagas por curso e, uma semana depois, volta atrás

Não é de hoje que a formação de médicos está no centro de uma disputa. De um lado, entidades como o Conselho Federal de Medicina (CFM) denunciam a falta de qualidade de grande parte dos cursos de graduação em funcionamento no País. Com razão, lembram que o exercício da medicina lida diretamente com a vida de seres humanos − e que todo recém-formado, com diploma na mão, já pode solicitar registro profissional e atuar. De outro, instituições de ensino superior, notadamente no setor privado, tendo à frente a Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), demandam a criação de novos cursos e a expansão de vagas. Um dos argumentos é que faltam médicos no Brasil.

Eis um debate que se arrasta faz tempo. Entra ano e sai ano, repetem-se justificativas e estatísticas de ambos os lados, sem que se chegue a um consenso mínimo capaz de dar rumo e transparência a uma política pública que é literalmente vital para a população. Afinal, o que está em jogo é a formação de quem vai cuidar da saúde de todos os habitantes do País.

Na semana passada, o Estadão revelou mais um capítulo dessa contenda: portaria do Ministério da Educação (MEC), publicada em 16 de maio, permitiu o acréscimo de 100 vagas ao total originalmente previsto em cada curso criado por ocasião do Programa Mais Médicos. Sem maiores explicações, como é de praxe no governo Bolsonaro, o novo ato alterou portaria anterior, de 2018. 

Em nota, o Conselho Federal de Medicina destacou que a portaria poderia resultar na criação de até 37 mil novas vagas em cursos já existentes, milhares delas em municípios sem o número exigido de leitos hospitalares e de equipes do Programa Saúde da Família por estudante. O CFM defendeu a revogação imediata da portaria. A Associação Médica Brasileira (AMB), por sua vez, argumentou que o problema não é de falta de profissionais, mas de má distribuição. Representantes de donos de universidades discordaram, afirmando que a maior oferta de vagas contribuiria para combater o problema.

Em 2018, o então presidente Michel Temer anunciou a suspensão da abertura de cursos de medicina por cinco anos, sob o argumento de que a expansão nos anos anteriores teria sido suficiente. O foco, portanto, passaria a ser a qualificação dos cursos já existentes. Na época, assim como agora, as mesmas vozes falaram a favor e contra. 

Ao Estadão, o pesquisador e docente Mario Scheffer, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), criticou a portaria do MEC. E classificou a suspensão anunciada por Temer como uma “moratória de araque”: “Do início do governo Bolsonaro até agora, o MEC liberou 37 novos cursos de medicina”, disse Scheffer. Diante da reação das entidades médicas, o ministério recuou da autorização para 100 vagas adicionais por curso, e uma nova portaria, publicada em 23 de maio, anulou a anterior. Enquanto isso, a formação de médicos no País segue à espera de uma solução capaz de garantir a qualidade e a transparência que o tema requer. 

 

 

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