quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Pedro Cavalcanti e Renato Fragelli* - Desindustrialização e subsídios

Valor Econômico

Subsídios para “setores estratégicos” e proteção comercial vão na direção oposta do que o Brasil precisa para crescer

Até pouco tempo atrás, economistas heterodoxos e representantes da indústria costumavam apontar a China como exemplo de políticas industriais bem sucedidas e indicação da necessidade de subsídios para o setor. Ainda hoje muitos deles defendem a volta dos velhos (e lucrativos) esquemas de financiamento do BNDES como condição necessária para o desenvolvimento nacional. Essas crenças, entretanto, ignoram dois fatos importantíssimos: a explosão do financiamento privado de longo prazo no Brasil, ocorrida desde que o financiamento estratégico do BNDES foi reduzido e a perda recente e acelerada da importância relativa da produção industrial na economia chinesa, com o aumento relativo da participação dos serviços.

Entre 2011 e 2014, no auge da Nova Matriz Econômica, os desembolsos do BNDES - subsidiados em sua maioria - ultrapassavam os financiamentos no mercado de capital privado doméstico e se mantinham acima de 3% do PIB. Os privados, em 2011 por exemplo, eram somente 2,57% do PIB. Após o fim da TJLP e a introdução da TLP, os financiamentos do banco passaram a se dar a taxas próximas das de mercado e, ao contrário do que previam os desenvolvimentistas e lobistas da indústria, não houve escassez de fundos.

Ao contrário, o aumento das captações privadas mais que compensou a redução dos desembolsos do BNDES. Mesmo depois de duas recessões e choques como o da covid, o financiamento total - privado e do BNDES - é hoje maior do que antes das mudanças nas regras de financiamento do banco e o mercado privado representa hoje 6,8% do PIB e os desembolsos do BNDES, 0,74% do PIB.

Por décadas, os auto-intitulados desenvolvimentistas afirmavam que, como não havia um mercado privado que provesse financiamento de longo prazo, a atuação do BNDES era necessária para sustentar o investimento. Mas a causalidade era exatamente a oposta: não havia um mercado privado de financiamento de longo prazo porque o BNDES oferecia financiamentos subsidiados. Com efeito, logo após a redução dos empréstimos do banco, o mercado privado imediatamente ocupou o espaço deixado, e hoje as empresas conseguem emitir dívida de longo prazo, financiando-se privadamente sem problemas.

Preconizar a volta do “BNDES de antigamente” e de políticas industriais ativas, como ainda fazem muitos desenvolvimentistas, é simplesmente advogar que o Estado deva atuar numa área onde o mercado privado já cumpre seu papel adequadamente. Apesar de não haver falta de financiamento, eles continuam defendendo que o contribuinte brasileiro transfira recursos para os acionistas e trabalhadores das empresas com acesso ao BNDES.

A insistência em políticas industriais também ignora o fato de que toda economia capitalista, ao longo de seu processo de desenvolvimento, se transforma gradualmente em uma economia de serviços. Nesta, a acumulação de capital humano, além de tecnologia e inovação, são os fatores determinantes do crescimento. A China, antes um contra-exemplo, agora tornou-se mais um bom exemplo.

Artigo recente de Chen, Pei, Song, e Zilibotti (Tertiarization Like China, NBER WP #30272) mostra que, nos últimos anos, a economia chinesa rapidamente se ajustou à norma. Hoje, os setores de serviços já correspondem a mais de 60% do PIB chinês, cifra semelhante à média dos países da OCDE com mesmo nível de renda per capita. A tendência da indústria é a oposta: sua participação na economia chinesa, que era muito superior àquela de países da OCDE com renda per capita similar, hoje está ligeiramente abaixo da norma.

O crescimento não é só de serviços intermediários para indústrias, mas também em serviços pessoais - restaurantes, comércio, saúde etc - e não tem qualquer ligação com serviços públicos. Aqui dois fatos chamam atenção e trazem lições para este debate: 1) no período, a produtividade do trabalho chinês e a produtividade total dos fatores, uma medida de eficiência, cresceram muito mais rápido nos serviços que na indústria; 2) o aumento da educação média da mão de obra foi também mais forte nos serviços. Esse setor é hoje o mais intensivo em mão de obra altamente qualificada.

Os obcecados pela indústria erram no foco setorial, pois a indústria não terá grande impacto sobre a economia como um todo, mas deixarão bem contentes os que voltariam a receber subsídios. Se a economia brasileira, assim como a chinesa e outras, se tornarão inexoravelmente economias de serviços, a prioridade deveria ser políticas educacionais agressivas de qualificação da mão de obra, de melhoria da qualidade do que se ensina, de investimento em pesquisa, bem como de reformas institucionais que diminuam as distorções na economia como um todo. Subsídios para “setores estratégicos” e proteção comercial vão na direção oposta do que o Brasil precisa para crescer. Não são um “projeto de nação” ou de desenvolvimento, mas sim de continuidade do atraso e da desigualdade.

Pode-se ignorar os fatos e continuar defendendo políticas industriais que não funcionaram no passado e só pioram a distribuição de renda. Isto é o esperado de lobistas e representantes da indústria, que só têm a ganhar privadamente com elas. São os capitalistas que não gostam do capitalismo. Mas por que nossos desenvolvimentistas, economistas heterodoxos e dos partidos de esquerda continuam a defendê-las é algo que nunca nos deixa de surpreender.

*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento.

Renato Fragelli Cardoso é professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE-FGV).

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o texto,a pensar...

Mais um amador disse...

Ótimo texto !