segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Marcus André Melo* - Por que a atual disputa presidencial é diferente das anteriores?

Folha de S. Paulo

Há uma mescla de wedge issues, afeto e temas redistributivos na eleição atual

Há uma descontinuidade entre a atual disputa presidencial e as anteriores. Na Nova República, elas foram vertebradas pela dimensão socioeconômica; a atual tornou-se multidimensional.

Temas redistributivos e a macroeconomia (inflação/emprego) ocuparam a agenda política até 2018. PSDB e PT protagonizaram a disputa de narrativas em torno de quem redistribuía mais e/ou melhor (garantindo simultaneamente governabilidade fiscal e eficiência). E mais: o padrão de voto era cada vez mais segmentado por renda. Entretanto o país foi submetido a um duplo choque que destruiu as bases desta disputa.

O primeiro resultou da magnitude da debacle econômica após o superciclo de commodities, da euforia fiscal e da má gestão macroeconômica dos governos Lula (segundo mandato) e Dilma. A crise produziu colossal reversão de expectativas sobretudo nas novas camadas que haviam experimentado mobilidade vertical. O sentimento antissistema prosperou.

O segundo choque consistiu de escândalos de corrupção, cuja vertiginosa exposição pública tem pouquíssimos paralelos em democracias. O sistema partidário implodiu abrindo janela de oportunidade para outsiders antissistema, mobilizando wedge issues (temas ortogonais à disputa consolidada), sobretudo ligado a valores (guerra cultural), mas também corrupção e segurança pública. Em 2018, Bolsonaro foi vitorioso porque construiu maiorias na nova dimensão. A disputa tornou-se bidimensional.

A guerra cultural cujo território natural são as redes tem comunalidades com o que ocorre em outros países na atual onda populista.

O duplo choque, no entanto, explica sua virulência aqui. O novo eixo de polarização produzido pela guerra cultural engendrou uma resposta centrada na dimensão democracia-autocracia. Esta, no entanto, tem tido efetividade decrescente na medida em que o tempo passa e o presidente abraça a velha política. O ditador em potência tornou-se bobo da corte.

A disputa atual reflete o choque da pandemia no sistema político. Ele introduziu uma dimensão afetiva. Ela decorre da experiência transformadora da pandemia que lhe deu saliência e está ancorada numa clivagem de gênero no eleitorado, da mesma forma que a guerra de valores se assenta em clivagem de ordem confessional. Quem tem mais empatia e solidariedade?

O rapprochement com o centrão produziu menos ênfase na guerra cultural do bolsonarismo raiz e mudanças na agenda econômica. Bolsonaro é incumbente: já não foca exclusivamente em wedge issues; a "lógica de corrida armamentista" em torno de transferências diretas (que remete ao padrão anterior: quem transfere mais?) e da gestão macro. Assim a disputa é multidimensional.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Se saber quem era o menos pior foi sempre difícil,desta vez está mais fácil do que nunca.