Folha de S. Paulo
Há uma mescla de wedge issues, afeto e
temas redistributivos na eleição atual
Há uma descontinuidade entre a atual
disputa presidencial e as anteriores. Na Nova República, elas foram vertebradas
pela dimensão socioeconômica; a atual tornou-se multidimensional.
Temas redistributivos e a macroeconomia
(inflação/emprego) ocuparam a agenda política até 2018. PSDB e PT
protagonizaram a disputa de narrativas em torno de quem redistribuía mais e/ou
melhor (garantindo simultaneamente governabilidade fiscal e eficiência). E
mais: o padrão de voto era cada vez mais segmentado por renda. Entretanto o
país foi submetido a um duplo choque que destruiu as bases desta disputa.
O primeiro resultou da magnitude da debacle econômica após o superciclo de commodities, da euforia fiscal e da má gestão macroeconômica dos governos Lula (segundo mandato) e Dilma. A crise produziu colossal reversão de expectativas sobretudo nas novas camadas que haviam experimentado mobilidade vertical. O sentimento antissistema prosperou.
O segundo choque consistiu de escândalos de
corrupção, cuja vertiginosa exposição pública tem pouquíssimos paralelos em
democracias. O sistema partidário implodiu abrindo janela de oportunidade para
outsiders antissistema, mobilizando wedge issues (temas
ortogonais à disputa consolidada), sobretudo ligado a valores (guerra
cultural), mas também corrupção e segurança pública. Em 2018, Bolsonaro foi
vitorioso porque construiu maiorias na nova dimensão. A disputa tornou-se bidimensional.
A guerra cultural cujo território natural
são as redes tem comunalidades com o que ocorre em outros países na atual onda
populista.
O duplo choque, no entanto, explica sua
virulência aqui. O novo eixo de polarização produzido pela guerra cultural
engendrou uma resposta centrada na dimensão democracia-autocracia. Esta, no
entanto, tem tido efetividade decrescente na medida em que o tempo passa e o
presidente abraça a velha política. O ditador em potência tornou-se bobo da corte.
A disputa atual reflete o choque da
pandemia no sistema político. Ele introduziu uma dimensão afetiva. Ela decorre da
experiência transformadora da pandemia que lhe deu saliência e está ancorada
numa clivagem de gênero no eleitorado, da mesma forma que a guerra de valores
se assenta em clivagem de ordem confessional. Quem tem mais empatia e
solidariedade?
O rapprochement com o centrão produziu
menos ênfase na guerra cultural do bolsonarismo raiz e mudanças na agenda
econômica. Bolsonaro é incumbente: já não foca exclusivamente em wedge issues;
a "lógica de corrida armamentista" em torno de transferências diretas
(que remete ao padrão anterior: quem transfere mais?) e da gestão macro. Assim
a disputa é multidimensional.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Um comentário:
Se saber quem era o menos pior foi sempre difícil,desta vez está mais fácil do que nunca.
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