Folha de S. Paulo
A política de segurança na Colômbia e a
democracia
São auspiciosos os ventos que sopram
da Colômbia,
onde o presidente recém-empossado acaba de trocar a
velha cúpula militar por outra, qualificada como "violação zero
dos direitos humanos e corrupção zero". O objetivo imediato é a
"reconciliação das forças de segurança com a sociedade". A
perspectiva global é a da circulação de gerações de oficiais num projeto de
nova política de segurança.
Entre nós é difícil vislumbrar algo assim, quando ainda se mostra ambíguo o
poder armado frente ao espírito anticonstitucional de núcleos extremistas
emergentes. Na ausência de declarações factualmente confiáveis, vale a pena
recorrer a uma alusão literária, especificamente ao romance "Farda,
Fardão, Camisola de Dormir", de Jorge Amado.
Com o pretexto temático de uma eleição acadêmica, o escritor narra a disputa
entre o "coronel Agnaldo Sampaio Pereira", representante do
nazifascismo estado-novista, e o "general Waldomiro Moreira", de
tendências liberais. Nada estranho à vida real que figuras similares aspirem ao
fardão das letras. Há casos notórios.
A atualidade romanesca não está apenas na
coincidência entre fatos da ditadura de
Vargas e a atmosfera protofascista de agora, em que nomes de
sórdidos torturadores brilham em discursos oficiais e em que trogloditas
empresariais preconizam o fim da República. Atual é principalmente a sugestão
implícita no livro e avivada pelos ventos colombianos de que a luta entre duas
mentalidades seja o leitmotiv de uma reflexão coletiva sobre a premência de um
"aggiornamento" das Forças Armadas.
Disso houve episódios ilustrativos. Até se modernizarem, por influência dos
militares franceses (anos 20), essas forças eram a "necrogarantia" do
ethos escravista. A Proclamação feita pelo alto foi o passo formal para a
apropriação do Estado pelas oligarquias. Combinando a custódia militar com o
patrimonialismo, a República já nasceu Velha. E ao longo da Nova nada afetou o
DNA intervencionista da organização armada.
Mas sempre houve, como sugere o romance, estados mentais diversos. A diferença,
se ativada pelo fortalecimento da sociedade civil, talvez possa mobilizar a
compreensão de que o golpismo como solo ideológico do combate a inimigos hoje
imaginários (comunismo, bolivarianismo etc.) é o álibi da preservação do
status-quo histórico, é a doença crônica, mas não autoimune, do militarismo.
Sem uma "cura", isto é, sem modernização de mentalidades, o futuro
institucional das Forças arrisca-se ao vexame de uma indistinção entre farda e
camisola de dormir.
Daí a urgência estratégica de ter na mente que o verdadeiro inimigo dos
recalcitrantes, o seu eterno fantasma, é a própria República democrática.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar
Nagô".
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