Editoriais / Opiniões
Governo transforma o ensino superior em
terra arrasada
O Globo
Matrículas caíram de 1,3 milhão para 1,2
milhão, segundo Censo — só em 2020, 270 mil alunos trancaram o curso
O último Censo da Educação Superior
identificou queda no número de alunos matriculados nas universidades, de 1,3
milhão em 2019 para 1,2 milhão em 2020. Contribuiu para isso o trancamento de
270 mil matrículas. O enfrentamento da evasão nas universidades, num país que
carece de profissionais qualificados, tem relação evidente com o corte nas
bolsas de auxílio aos alunos carentes, não apenas dos cotistas, forçado pelo
garrote orçamentário que o governo Jair Bolsonaro impôs às universidades
federais. O tema foi abordado com destaque no VIII Fórum Nacional de Reitores e
Dirigentes das Universidades Parceiras do Futura, canal ligado ao Grupo Globo
que faz 25 anos.
Em 2020, no Censo universitário realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do MEC, completou-se outra “década perdida” no ensino superior. A taxa anual média de crescimento foi de irrisório 0,3%, segundo a Fundação Getúlio Vargas. Na pandemia, a situação ficou ainda pior, devido à corrosão dos orçamentos familiares e à aceleração da inflação. A evasão do ensino superior está expressa também na queda no número de alunos que se formam: segundo o Censo, os diplomados nas universidades cresceram até atingir quase 157 mil estudantes em 2018, quando passaram a cair, até chegar a 118 mil em 2020.
O trancamento de 270 mil matrículas em
2020, mais que o dobro de 2019, tem como principal motivo as dificuldades
econômicas — entre o trabalho e a faculdade, o estudante é forçado a largar a
faculdade e buscar sustento para si e para a família. Mas não foi só isso. Com
o desembarque em Brasília do governo Bolsonaro, com sua ideologia negacionista
e anti-Ciência, tudo o que está relacionado à cultura e à educação foi deixado
de lado. A “guerra cultural” atingiu o orçamento das universidades federais,
enquanto tornava o MEC um ministério inoperante.
No período de dez anos entre 2011 e 2020,
apenas 40%, em média, dos alunos que se matricularam em alguma faculdade
concluíram o curso. As universidades privadas apresentaram o maior índice de
formaturas (60%), seguidas das federais (54%) e das estaduais (49%). Mas as
privadas, com exceção das católicas e de algumas outras, ficaram aquém das
públicas em termos de qualidade de ensino. Conclusão: formam-se menos
profissionais, e boa parte daqueles que se formam não supre a qualidade da mão
de obra necessária ao país.
Diante desse cenário de dificuldades, em
que a verba das universidades federais destinada a alunos socialmente
vulneráveis está 16% menor que em 2019, reitores precisariam destinar mais
recursos para bolsas aos alunos cotistas e demais necessitados.
Não é o que tem acontecido, como mostra o
exemplo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela destinou R$ 54,3
milhões em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, para 19 tipos de auxílios
aos alunos (alimentação, compra de material didático, entre outros fins). Neste
ano, em virtude dos cortes feitos pelo governo, serão apenas R$ 48,2 milhões,
11,2% de queda em relação a 2019. Para evitar a evasão, deveria ocorrer o
contrário. Além de desidratar o MEC, o bolsonarismo também esvazia as faculdades
públicas, promovendo uma política de terra arrasada no ensino superior.
Tortura de jovens acusados de furto na
Bahia precisa ser punida com rigor
O Globo
Barbárie exibida em vídeo divulgado na
internet não pode ter espaço num Estado democrático
São estarrecedoras, repugnantes e
inadmissíveis as cenas de dois jovens negros, funcionários de uma loja em
Salvador, na Bahia, torturados por empresários que os acusam de furto. As
imagens, divulgadas na internet, mostram um dos rapazes sendo submetido a uma
sessão de pauladas nas mãos. O outro é obrigado a exibir o número 171
(referência ao artigo do Código Penal que define o crime de estelionato),
marcado nas mãos com um ferro de passar. Um dos jovens foi acusado de furtar R$
30, e o outro de levar uma mercadoria do estabelecimento.
O caso, sob investigação da Polícia Civil
da Bahia e do Ministério Público do Trabalho (MPT), veio à tona depois que o
vídeo viralizou na internet. As vítimas contaram à polícia que a sessão de
tortura e a gravação das imagens foram feitas pelo dono da loja e por um
parente dele. Os jovens negam que tenham cometido furto e alegam que os patrões
não respeitavam direitos trabalhistas. Dizem que trabalhavam sem carteira
assinada, jornada fixa ou hora de descanso. Contaram ainda que sofriam desconto
no salário a qualquer suspeita de furto.
De acordo com a polícia, um dos empresários
ouvidos no inquérito disse que queria fazer “justiça com as próprias mãos” por
ter ficado “chateado” com o furto na loja. As cenas exibidas no vídeo, ainda
sob perícia na investigação, são escabrosas. Numa delas, um dos jovens aparece
seminu, com um pano na boca para abafar os gritos durante a sessão de tortura.
“Ele queimou minhas mãos, me deu várias pauladas, vários murros e falou que eu
ia passar [o que acontecia] no tempo da escravidão”, contou um dos rapazes à TV
Bahia.
Tão impressionante quanto a tortura é ela
ter sido divulgada na internet sem o menor pudor, como se fosse um modelo a
seguir. “Ó, pessoal, mais um ladrão aqui”, diz o narrador. É um descalabro. Não
existe “justiça pelas próprias mãos”, como não há atalhos para a lei. Se alguém
é acusado de furto, ou seja lá do que for, deve-se levar o caso à polícia para
que o suspeito seja investigado e, comprovada a prática de crime, possa ser
punido, sempre na forma da lei.
Infelizmente não são raros os absurdos no
país do vale-tudo. Em abril do ano passado, Bruno Barros, de 29 anos, e o
sobrinho Yan, de 19, foram acusados de furtar carne num supermercado de
Salvador. Em vez de ser levados à polícia, foram entregues a traficantes por
seguranças do estabelecimento. Dias depois, apareceram mortos com sinais de
tortura. Na última ligação para uma amiga, Bruno fez um pedido desesperado:
“Chama a polícia”.
O caso dos dois jovens torturados em Salvador precisa ser investigado com rigor. Se confirmadas as acusações, os responsáveis precisam ser punidos exemplarmente. Tortura é crime inafiançável. Para o bem da sociedade, é fundamental que situações como essa não se perpetuem, especialmente quando percorrem as vias obscuras da internet, disseminando a barbárie. “Tribunal do tráfico”, “justiça pelas próprias mãos” e outras aberrações do tipo não podem prosperar num Estado democrático.
Orçamento fictício
Folha de S. Paulo
Após gastança eleitoreira, governo faz
previsão irrealista de receita e despesa
A melhora do resultado fiscal do governo
federal, com saldo de R$ 115,6 bilhões (ou 1,38% do Produto Interno Bruto) nos
12 meses encerrados em julho, não autoriza uma atitude de relaxamento.
Ao contrário, o prognóstico é de sensível
deterioração em 2023, como fica claro no projeto de
lei orçamentária anual recém-enviado pelo Executivo ao Congresso.
A peça, frágil, apresenta cenários
irrealistas e serve para demonstrar o aviltamento continuado, no governo Jair
Bolsonaro (PL), das regras e procedimentos que deveriam balizar a gestão das
finanças públicas. O rombo esperado é de R$ 63,7 bilhões, sem considerar as
despesas com juros —hoje mais elevados— da dívida pública.
O projeto começa mal ao prever para o
próximo ano crescimento do PIB de 2,5%, muito acima das expectativas mais
comuns entre analistas de mercado. Ficam assim excessivamente otimistas também
as estimativas de receitas tributárias, uma prática sempre temerária.
É fato que a arrecadação tem surpreendido positivamente desde 2021, mas tal fenômeno decorre em grande medida da escalada da inflação, que, espera-se, deve perder força daqui em diante.
Superestimar receitas ajuda o governo a
viabilizar, no papel, a continuidade da renúncia de impostos federais sobre
combustíveis, abrindo mão de R$ 52,9 bilhões que farão falta diante de tantas demandas
por mais gastos.
No total, a conta dos subsídios tributários
voltará ao patamar exagerado de 4% do PIB, o dobro do que prometia o governo na
agenda de reequilíbrio das contas.
Elimina-se, assim, o tênue progresso obtido
desde 2016 em cortar essa rubrica, na contramão da diretriz inscrita na
Constituição.
Do lado das despesas, o projeto usou como
base o valor de R$ 405
mensais para o Auxílio Brasil, ao custo de R$ 105 bilhões em 2023,
mesmo diante da quase certeza de que politicamente será obrigatório manter os
atuais R$ 600.
Com a correção, serão necessários mais R$
52 bilhões, montante que não cabe no teto de gastos, fixado em R$ 1,8 trilhão,
o que deve levar a mais uma alteração casuística na Constituição.
Não se vê nenhum esforço em fazer com que o
necessário programa social caiba nos limites da despesa, como se observa pela
destinação de R$ 38,8 bilhões para emendas parlamentares ao Orçamento —dos
quais R$ 19,4 bilhões para as opacas emendas de relator.
Foram reservados ainda R$ 14,5 bilhões para
reajustes de salários do funcionalismo, sendo R$ 11,6 bilhões para um aumento
linear de 4,85% no Executivo, num sinal de que o congelamento dos últimos anos
será insustentável.
Como seria de esperar, o descalabro
eleitoreiro promovido neste ano por Bolsonaro deixará
sequelas que vão emparedar a próxima administração desde seu
primeiro dia. Será necessário grande esforço para restabelecer a ordem fiscal.
Os órgãos de controle, aliás, não podem se omitir diante do crescimento contínuo de despesas sem disciplina nem transparência.
A arma apontada
Folha de S. Paulo
Atentado contra Cristina Kirchner exige
apuração rigorosa, isolada da política
O pouco que se sabe acerca do atentado
contra a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, é mais que
o bastante para repúdio e temor. O risco de que polarizações políticas
descambem para a violência, lá como aqui, estava evidente mesmo antes do
episódio.
Vídeos mostram com clareza chocante a
pistola que se aproxima do rosto de Cristina, rodeada por uma multidão de
apoiadores. A vice-presente se abaixa, aparentemente sem notar a ameaça. A arma
não foi disparada, por motivos ainda não esclarecidos.
A polícia local prendeu o brasileiro
Fernando Andrés Sabag Montiel, 35, identificado como o homicida em
potencial. Informações
preliminares dão conta de que ele vive no país vizinho desde
1993, trabalha como motorista de aplicativo e já teve problemas anteriores com
as autoridades. Munições foram encontradas em sua casa.
Ademais, seria titular de conta em rede
social que acompanha discursos radicais e teria tatuagens associadas ao
nazismo. A sua versão para os acontecimentos é desconhecida até o momento.
Qualquer governo faria alarde em torno do
caso, por bons motivos. Tratando-se da administração do presidente Alberto
Fernández, que enfrenta severa crise política e econômica a um ano das eleições,
a reação inflamada chegou a atropelar a prudência necessária.
Fernández decretou feriado para que a
população prestasse solidariedade à vice e ex-presidente, que é alvo de
processos na Justiça e se diz vítima de perseguição.
Fez ainda pronunciamento à nação, no qual
se apressou a atribuir o ocorrido ao "discurso de ódio que está dividindo
os argentinos". Desnecessário dizer que tal postura em nada contribui para
uma apuração rigorosa e precisa dos fatos.
Também é recomendável cautela nos paralelos
entre o episódio argentino e o infame ataque à faca
a Jair Bolsonaro em 2018. Este já foi objeto de investigação,
na qual se concluiu que o agressor sofria de transtornos mentais e agiu de moto
próprio —o restante são teses conspiratórias e desinformação espalhadas à
direita e à esquerda.
O Estado de S. Paulo
Ao cogitar a renovação do inventado estado de calamidade para manter o Auxílio Brasil em R$ 600 em 2023, Guedes e Bolsonaro têm de decidir se o País está em crise ou ‘bombando’
No dia seguinte à apresentação de um Orçamento
que explicitou a incapacidade de fazer valer sua principal promessa de
campanha, o presidente Jair Bolsonaro disse que o Executivo poderá recorrer
novamente a um estado excepcional para manter o piso do Auxílio Brasil em R$
600 em 2023 sem ter de justificar o descumprimento de regras fiscais e
orçamentárias. “Se a guerra continuar lá fora, continuamos em emergência aqui
da mesma forma”, disse Bolsonaro. Pouco antes, o ministro da Economia, Paulo
Guedes, já havia deixado claro que compactua com o uso dessa manobra. “Se a
guerra da Ucrânia continua, prorroga o estado de calamidade, e aí você continua
com R$ 600”, afirmou. Diante do fato de que essa solução fabricada voltou a ser
estudada, o governo, até por uma questão de coerência, precisa decidir, afinal,
se o Brasil está em crise ou está “bombando”, como Paulo Guedes costuma dizer.
Com razão, o desempenho da economia tem
sido motivo de comemoração por parte do governo. Guedes disse que o crescimento
– de 1,2% no segundo trimestre sobre os três meses anteriores – foi maior que o
registrado por Estados Unidos, Europa e China. Aproveitou para mencionar a
redução da inflação; celebrar a recuperação do comércio; exaltar o avanço dos
investimentos; criticar bancos que reduziram as estimativas para o Produto
Interno Bruto (PIB); destacar a queda do desemprego e o aumento da renda dos
trabalhadores; e negar a existência de uma bomba fiscal no ano que vem. “Contra
fatos não há argumentos. Que comece o ‘mas’”, desafiou.
Se a conjunção adversativa não cabe para
descrever a situação do Brasil, como defende Guedes, então o País estaria
“decolando”, razão pela qual não há motivo para que ele cogite – e frise-se,
precisamente no mesmo dia e no mesmo evento em que se gabou do desempenho da
economia brasileira – adotar um estado de calamidade a que só se recorre em
momentos de profunda crise. Se há outros fundamentos que dão amparo a esse
recurso, é dever do ministro revelá-los à sociedade. É imprescindível explicar
por que é preciso romper novamente o teto de gastos e desmoralizar a pouca
credibilidade de que o arcabouço fiscal ainda dispõe, a não ser que isso seja
apenas um pretexto para solucionar urgências eleitorais relacionadas à
candidatura de Bolsonaro.
O reconhecimento do estado de calamidade
pública se deu no contexto da eclosão da covid-19, por meio de um decreto
legislativo aprovado em março de 2020 e que produziu efeitos até 31 de dezembro
daquele mesmo ano. A ele se seguiu a emenda constitucional que instituiu o
orçamento de guerra e garantiu o pagamento do auxílio emergencial. Crente de
que a pandemia, cujos efeitos sempre menosprezou, estava próxima do fim, o
governo deixou milhões de famílias sem socorro nos três primeiros meses de
2021. Contrariado, acatou o retorno dos pagamentos em março e, com a aprovação
que ele proporcionou ao presidente, criou o Auxílio Brasil em dezembro. Em
julho, o Legislativo deu aval à elevação do piso a R$ 600, mas com uma
importante diferença. Era preciso driblar, além do teto, as restrições legais
que impediam o governo de alterar benefícios às vésperas das eleições. Foi
apenas e tão somente por isso que o Executivo invocou o estado de emergência.
Sem nenhum pudor, usou a guerra na Ucrânia para justificar a adoção de medidas
pautadas pelo pleito de outubro e que apenas confirmaram uma reiterada
displicência com a parcela mais carente da população.
Se o governo vê no desempenho do PIB a
“consolidação da retomada da atividade econômica, mesmo com os impactos do
conflito do Leste Europeu e os efeitos remanescentes da pandemia”, como
descreveu o Ministério da Economia em nota oficial, não pode continuar a usar
uma guerra de duração imprevisível para defender um recorrente descumprimento
do arcabouço fiscal e orçamentário que rege o País. Para além da incompetência
administrativa e da absoluta insensibilidade com as vítimas do confronto, essa
é uma narrativa que subestima a inteligência da sociedade.
Descaso com a inovação
O Estado de S. Paulo
Ao limitar a liberação de recursos de fundo
científico, Bolsonaro demonstra descompromisso com avanço tecnológico
Inovação, assim como ciência e tecnologia,
é premissa para o desenvolvimento econômico. Não se trata de frase de efeito ou
jogo de palavras. É fato. E vale para qualquer setor. No Brasil, infelizmente,
o governo do presidente Jair Bolsonaro não se cansa de dar as costas para o
mundo e ignorar a receita de sucesso que orienta a atividade econômica em
países desenvolvidos, onde investimentos em inovação e tecnologia estão
presentes nos planejamentos de curto, médio e longo prazos.
A mais recente demonstração do despreparo
do presidente − e de seu descompromisso em relação ao futuro do País − foi a
edição da Medida Provisória (MP) 1.136/2022, que limita a aplicação de recursos
do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Com uma
canetada, Bolsonaro não apenas atropelou o Congresso, que havia proibido o
contingenciamento de recursos do fundo, como restringiu a liberação de parte
significativa das verbas neste ano e nos quatro anos posteriores ao seu atual
mandato.
É isso mesmo: se depender da medida
provisória assinada pelo presidente, o FNDCT somente voltará a operar com 100%
de sua capacidade em 2027. Não é preciso ser cientista nem empresário para
imaginar o tamanho do prejuízo. Até porque, como se sabe, inovação não é algo
que se faz do dia para a noite. A descontinuidade de financiamento, portanto,
atingirá em cheio tanto o que já vinha sendo pesquisado quanto o que deixará de
ser feito. Em resumo, uma receita para o atraso.
Como mostrou o Estadão, entidades
científicas e empresariais reagiram de imediato. A Confederação Nacional da
Indústria (CNI) classificou a medida provisória como um retrocesso e listou
algumas das centenas de pesquisas bancadas pelo fundo. Entre elas, o
desenvolvimento de fertilizantes agrícolas e a realização de testes com vacinas
brasileiras contra a covid-19. “Investir em inovação não é uma opção, é
obrigação para os países desenvolverem suas economias e serem competitivos”,
afirmou o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade.
A CNI detalhou como se dará o bloqueio de
recursos ano a ano: já em 2022, o FNDCT deixará de contar com R$ 3,5 bilhões em
relação ao previsto. Daí em diante, a MP estabelece porcentuais máximos de
aplicação das receitas do fundo: 58% em 2023; 68% em 2024; 78% em 2025; e 88%
em 2026. Sem dúvida, números dignos de um programa contra a ciência, contra a
tecnologia e contra a inovação.
Eis o retrato do governo Bolsonaro: incapaz
de definir um programa de desenvolvimento estratégico para o País, seu legado é
o avesso de qualquer projeto. Não bastasse o reiterado endosso do presidente ao
negacionismo científico, Bolsonaro tenta agora asfixiar um mecanismo essencial
para o Brasil avançar em sua capacidade de inovação tecnológica. Diante de
tamanho desatino, espera-se que o presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), tome a decisão mais sensata no momento: devolver a medida provisória
ao Poder Executivo sem sequer examinar o seu teor.
Formulação racional de políticas públicas
O Estado de S. Paulo
Há pessoas e instituições produzindo evidências para qualificar o Estado. Mas campanhas baseadas em luta entre o ‘bem’ e o ‘mal’ turvam a escolha entre o que funciona ou não
Em 1999, um artigo publicado pelo governo
do Reino Unido (Modernizando o Estado) notava que o governo deve “produzir
políticas que realmente lidem com os problemas, que olhem para frente e sejam
moldadas por evidências, em vez de uma resposta a pressões de curto prazo”, ou
seja, políticas “que enfrentem as causas, não os sintomas”. Foi uma das
primeiras articulações do conceito de “políticas públicas baseadas em
evidências”: a ideia de que decisões políticas devem ser informadas por dados
objetivos, em contraste com decisões baseadas em ideologias, “senso comum” e
intuições.
É a tradução para a política da “medicina
baseada em evidências”, em que decisões clínicas são apoiadas em indicadores de
eficiência extraídos de pesquisas e testes randomizados controlados. Duas
iniciativas recentes na área de segurança exemplificam como esse conceito pode
ser aplicado na gestão pública.
Uma é o Indicador de eficiência de
operações policiais, criado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da
Universidade Federal Fluminense, com base em três parâmetros: o impacto aos
envolvidos (número de mortos, feridos e presos); quantidade de ilícitos
apreendidos (armas, drogas, contrabando); e as motivações das ações (se têm
respaldo e autorização judicial). Tais critérios podem ser, por óbvio,
questionados, mas são claros e verificáveis. A outra iniciativa é um convênio
do Estado de São Paulo com a USP e a FGV para medir o impacto das câmeras
corporais em PMs. O projeto durará cinco anos e envolve a criação de
ferramentas de inteligência artificial que auxiliem na tomada de decisões na
área de segurança.
São técnicas para diagnosticar problemas e
implementar terapias. Mas a analogia entre a medicina e a política tem limites.
Os críticos alertam para os riscos da “tecnocracia”, em que as decisões seriam
tomadas por especialistas, em contraste com a democracia representativa, em que
as decisões são tomadas pelos representantes eleitos. É uma falsa dicotomia. O
exercício do poder democrático só é possível quando todos os cidadãos se sentem
participantes e, para isso, devem ter as melhores informações técnicas disponíveis.
Os fins devem ser os resultados que os
cidadãos querem. Os especialistas oferecem os meios comprovadamente eficazes. E
os representantes eleitos, enquanto guardiões do interesse comum, os
implementam de acordo com uma escala de prioridades, custos e benefícios.
As distorções ocorrem por húbris de
uma das partes. Os populistas alegam que estão apenas implementando a vontade
do povo e acusam qualquer oposição de antidemocrática. Os tecnocratas alegam
que só se curvam às necessidades e toda oposição é irracional.
O debate eleitoral no Brasil ilustra
particularmente os riscos do populismo. A polarização ideológica devora a
lógica e a empiria. A essência de uma política saudável, o senso de que os
cidadãos têm escolhas, que elas devem ser baseadas em evidências e que os
políticos devem assumir a responsabilidade por suas decisões, é sufocada por um
fatalismo que quebra a organicidade das políticas públicas.
Um bom sistema penal, por exemplo,
resguarda a segurança da sociedade e compensa os ofendidos, com punições ao
ofensor, e, ao mesmo tempo, garante os direitos do ofensor e promove a sua
ressocialização. Nas mãos dos demagogos, esses fins são antagonizados, como se
só houvesse uma escolha entre políticas preventivas ou repressivas, entre o
“garantismo” ou o “punitivismo”. Os partidários de cada campo – lutando pelo
“bem” – se dispensam de apresentar evidências que demonstrem a eficácia de suas
políticas e obliteram ad limine as evidências apresentadas pelo outro
– o “mal”.
Quebrar essa lógica depende de os cidadãos
revigorarem o seu senso de participação e escolha. Depende também da
valorização do arcabouço instrumental que possibilita qualificar o Estado. Há
muitas pessoas e instituições produzindo evidências nesse sentido. Há projetos,
há tecnologias e há lideranças dispostas a aproveitar esse potencial. Mas, para
que isso aconteça, será necessário desintoxicar o debate político,
direcionando-o para o que importa: não uma disputa entre o “bem” e o “mal”, mas
sim entre aquilo que funciona e o que não funciona.
Orçamento expõe desafio fiscal do próximo governo
Valor Econômico
Dados do dia a dia tendem a voltar ao
terreno negativo, sem uma âncora fiscal que ajude a coordenar as expectativas
O Projeto de Lei Orçamentária de 2023,
enviado pelo governo ao Congresso Nacional na semana passada, traça um cenário
macroeconômico muito otimista para as receitas e deixa de fora despesas que são
praticamente certas. Da forma como foi desenhado, é um esboço incompleto das
dificuldades que vai enfrentar o presidente da República a ser eleito em
outubro.
A nota de política fiscal do Banco Central
de julho ilustra bem o desafio para recolocar as contas públicas na trajetória
da solvência. Neste ano, com todos os ventos favoráveis para o governo, como a
valorização das commodities, a inflação muito alta e economia com sinais de
superaquecimento, o governo acumula um superávit primário de 2,48% do Produto
Interno Bruto (PIB) no período de 12 meses acumulado até julho.
Mas a perspectiva, até o final do ano, é de
redução no superávit. Os economistas do setor privado citam percentuais em
torno de 1% do PIB. É insuficiente para a estabilizar a dívida bruta - na
verdade, precisaria baixar, pois se encontra em elevados 77,6% do PIB.
Uma regra de bolso usada pelos economistas
diz que o primário necessário para estabilizar a dívida pública corresponde à
diferença entre a tendência de crescimento da economia no longo prazo (o PIB
potencial) e a taxa de juros real que deve vigorar no longo prazo (o juro
neutro).
A julgar pelo desempenho da economia na
última década, o PIB potencial dificilmente supera 1%. Já a taxa de juros
neutra, que o Banco Central chegou a estimar em 3% ao ano, está em alta, em
virtude das incertezas fiscais e da piora do cenário externo. Hoje, as
estimativas do mercado para o juro neutro estão entre 4% e 5%. Ou seja, o
superávit primário para estabilizar a dívida pública estaria em, no mínimo, 3%.
Mas o que já é insuficiente ficará ainda
pior. O governo estima na proposta do Orçamento a volta do déficit primário,
com um resultado negativo de R$ 63,7 bilhões, o que equivale a cerca de 0,6% do
PIB estimado para o período. Com esse déficit, a equipe econômica reconhece que
a dívida bruta vai voltar a subir, para 79% do PIB
Mas as premissas macroeconômicas usadas
nesses cálculos estão sob questão. O Orçamento se baseia numa previsão de
crescimento do PIB de 2,5%, enquanto que a mediana das projeções do boletim
Focus está em 0,38%. É possível que as previsões do mercado subam um pouco nas
próximas semanas, depois da surpresa positiva do PIB do segundo trimestre, mas
devem ficar bem longe do cenário otimista do governo.
Com o PIB inflado, a projeção de receitas
tende a ficar superestimada e, como consequência, a estimativa para o déficit
primário, subestimada. Outro efeito dessa previsão exagerada para o crescimento
da economia é que a trajetória para a relação dívida/PIB fica menos
desfavorável.
Como se não bastasse, há despesas certas
que ficaram fora do Orçamento. A proposta prevê recursos apenas para o
pagamento do auxilio emergencial de R$ 405, enquanto que os dois candidatos que
lideram a disputa eleitoral já se comprometeram com a continuidade dos R$ 600
em janeiro. Somente essa diferença aumenta o déficit primário em 0,48 ponto
percentual do PIB.
No Congresso, as despesas e renúncias de
receitas tendem a crescer. O relator da proposta do Orçamento, senador Marcelo
Castro (MDB-PI), já indicou que quer ampliar o reajuste do funcionalismo do
Executivo e aprovar a correção da tabela do Imposto de Renda. O objetivo, no
caso do funcionalismo, é equiparar o reajuste ao do Judiciário, que vai receber
9% em 2023 e 9% em 2024.
O próprio governo procurou queimar, no
Orçamento, qualquer excesso de superávit primário em relação à meta de R$ 65,9
bilhões definida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A mensagem do
Executivo reserva R$ 52,9 bilhões para a manutenção dos cortes de impostos
incidentes nos combustíveis, numa tentativa de segurar o aumento da inflação
esperada para o começo do ano que vem, quando esse benefício tributário deveria
expirar. Será um alívio temporário, porém, que não reduz o desafio do Banco
Central para colocar a inflação dentro das metas.
Nos últimos anos, o governo destruiu o teto
de gastos, mas alegava que, no curto prazo, a execução fiscal ia bem. O
Orçamento de 2023 expõe o quanto essa melhora era ilusória. Agora, os dados do
dia a dia tendem a voltar ao terreno negativo, sem uma âncora fiscal que ajude
a coordenar as expectativas em torno do ajuste de médio prazo.
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