domingo, 18 de setembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

É natural haver divergência entre pesquisas eleitorais

O Globo

Disparidades decorrentes de técnicas de amostragem distintas exigem maior transparência dos institutos

A campanha eleitoral foi tomada nos últimos dias por intenso debate a respeito da discrepância no resultado de pesquisas de opinião promovidas por diferentes institutos de reputação reconhecida no mercado. Chamou a atenção, entre pesquisas com metodologias semelhantes, uma diferença muito além daquilo que se convencionou chamar de “margem de erro”, aquela que os institutos afirmam abarcar a realidade com uma confiança acima de 95%.

O exemplo mais eloquente está na divergência entre as pesquisas realizadas na última semana por IpecDatafolha e Quaest — três institutos que fazem entrevistas cara a cara, metodologia tradicionalmente considerada mais confiável pelos estatísticos. Na corrida presidencial, a distância entre os candidatos Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro foi de 15 pontos percentuais no Datafolha, 12 no Ipec e oito no Quaest. Na disputa pelo governo mineiro, a diferença entre o líder Romeu Zema e o desafiante Alexandre Kalil é de 28 no Datafolha, 18 no Quaest e 16 no Ipec. No Rio, o governador Cláudio Castro livra 15 pontos sobre Marcelo Freixo no Ipec, dez no Quaest e apenas quatro no Datafolha (na prática, um empate). São números desconcertantes para quem quer conhecer os fatos.

Os resultados despertaram incredulidade, mas não deveria haver motivo para espanto nem celeuma. O maior problema não está na divergência em si, mas na incompreensão do público a respeito do que as pesquisas podem dizer — e na transparência deficiente dos institutos sobre suas premissas. Pesquisas estão sujeitas a falhas em vários momentos de sua confecção, em particular nas técnicas usadas para selecionar a amostra representativa do eleitorado e nos cálculos usados para balancear os resultados depois que as entrevistas são feitas, para que sejam mais fiéis ao sentimento da população.

A discrepância entre as pesquisas presidenciais pode ser facilmente explicada pelo percentual de eleitores de baixa renda que os institutos entrevistaram em suas amostras: 57% no Ipec, 50% no Datafolha e 38% no Quaest. Apenas este último trata os dados para que correspondam às informações disponíveis sobre renda, embora os demais façam outros ajustes. Pelas últimas sondagens do IBGE, os brasileiros de baixa renda são estimados em 44% da população, mas, como o último Censo foi feito há 12 anos, ninguém sabe com precisão. Isso dá aos institutos certa latitude para tratar suas amostras de acordo com o que consideram mais fidedigno diante do cenário atual. É esse tipo de escolha que pode abrir espaço a diferenças nos resultados que ultrapassem a “margem de erro”.

Seria fundamental, por isso, que os institutos fossem mais transparentes sobre suas metodologias. Nem sempre é o caso, já que apenas quem se debruça sobre os relatórios detalhados — publicados em geral no dia seguinte — e tem conhecimentos básicos de estatística consegue entender tais opções. O cidadão comum recebe as pesquisas como se fossem a descrição da verdade. É um erro, já que elas apenas traduzem um momento da corrida, dentro de um certo nível de confiança, que jamais pode ser absoluta. Não parece haver como fugir a essa percepção equivocada, mas é possível mitigá-la com maior transparência e deixando claro, sempre, que a estatística é uma ciência capaz de nos permitir lidar de modo mais racional e informado com riscos e incertezas — mas não de acabar com eles.

Agronegócio terá de enfrentar pressão externa por preservação ambiental

O Globo

Parlamento Europeu aprovou proposta para ampliar lista de sanções contra desmatamento

O Parlamento Europeu aprovou na última semana uma proposta para ampliar a lista de produtos que deverão ser proibidos de entrar no mercado comum caso estejam ligados ao desmatamento ou à degradação florestal. Da proposta original já constavam carne bovina, café, soja e madeira. Agora entraram carne de frango, carne suína e milho, entre outros. O próximo passo é uma negociação entre o Parlamento e os 27 países do bloco para chegar à versão final de uma lei para coibir o desmatamento. Na certa os exportadores afetados contestarão a medida em organismos como a Organização Mundial do Comércio. Mas é inevitável que aumente a pressão contra o desmatamento.

A decisão do Parlamento Europeu despertou revolta entre representantes do agronegócio brasileiro, que veem na medida uma afronta à soberania nacional. Outros defendem nossa legislação sobre o tema, em especial a lei de proteção da vegetação nativa, popularmente conhecida como Código Florestal, aprovada em 2012.

No papel, o problema parece bem encaminhado. Na prática, a história é outra. O Código criou dois instrumentos fundamentais para conter o desmatamento: um cadastro ambiental rural e um programa de regularização. A etapa de análise e validação dos cadastros continua lenta. Há muitos dados suspeitos, é difícil encontrar os proprietários e falta pessoal. Por isso não é surpresa que, na maioria dos estados, o programa de regularização esteja longe de se tornar realidade. Já passaram dez anos. Quantos mais serão necessários?

A redução drástica da devastação na Amazônia é urgente. Um dos maiores patrimônios do país e do planeta está virando fumaça, queimando por tabela a imagem externa do Brasil. As medidas de prevenção e repressão ignoradas pelo governo Jair Bolsonaro deverão voltar a surtir efeito se e quando retornarem. Mesmo assim, não bastarão para reduzir a pressão externa sobre o agronegócio.

Quase toda a produção agrícola brasileira não tem nenhuma relação com o desmatamento na Amazônia. A demanda por informações a respeito da produção de grãos será crescente, mesmo quando os focos de incêndio na floresta tropical forem debelados. Os produtores rurais continuarão responsáveis por prestar contas. Parece claro que o acesso a mercados internacionais estará condicionado à rastreabilidade dos produtos e à garantia de que são ambientalmente responsáveis. Encarar tal desafio não é uma ameaça ao Brasil, mas uma oportunidade.

É urgente conciliar a proteção ambiental e o crescimento da produção agrícola e de carnes. O agronegócio é responsável por quase metade das exportações do país, por 30% do PIB e por 20% dos empregos. O Brasil dispõe de recursos humanos e plenas condições materiais de expandir esse dínamo da economia e, ao mesmo tempo, proteger os recursos naturais. Mas precisa agir logo. Se a pressão interna pela preservação não for suficiente, logo o país será alvo de barreiras a seus produtos.

O tucano ensaia voo

Folha de S. Paulo

Avanço de Rodrigo no Datafolha torna mais acirrada disputa pelo Bandeirantes

O dado mais significativo da nova pesquisa Datafolha sobre a disputa pelo governo de São Paulo é a ascensão do governador Rodrigo Garcia (PSDB), que passou de 15% a 19% das preferências.

Embora esteja no limite da margem de erro, de dois pontos percentuais para cima ou para baixo, a variação não deixa de ser significativa. Na pesquisa anterior, Rodrigo mantinha-se em terceiro lugar, atrás de Tarcísio de Freitas (Republicanos), com quem agora está tecnicamente empatado.

O candidato apoiado por Jair Bolsonaro (PL) tem 22% das intenções de voto, enquanto Fernando Haddad (PT) lidera com 36%.

É incerto se o crescimento de Rodrigo prosseguirá e o levará ao segundo turno. Alguns fatores, contudo, merecem ser ponderados.

Antes de tudo, trata-se do incumbente, com acesso à estrutura e aos contatos propiciados pela máquina governamental, em especial no interior. Seu rival mais próximo é um nome sem tradição política no estado, que conta com o apoio do presidente para se projetar. Rodrigo, além disso, vem se tornando mais conhecido, valendo-se da propaganda eleitoral.

Com o avanço, o tucano está restabelecendo um já tradicional desenho político-ideológico de São Paulo, no qual o PSDB disputa a primazia em confronto com o PT e com uma terceira força, situada mais à direita e com traços populistas, que já foi representada em outros tempos pelo malufismo.

É fato que o chamado tucanato paulista e seu partido têm experimentado ultimamente um período de declínio, o que poderia favorecer o encerramento de um ciclo de governos que já atinge 28 anos. Mas não há, por ora, dados que permitam previsões mais consistentes sobre o desfecho da disputa.

Não mais de 62% dos entrevistados pelo Datafolha afirmam que já decidiram seu voto, enquanto outros 38% declaram que ainda podem mudar de ideia.

As projeções para o segundo turno continuam a apontar vitória de Haddad, mas a contenda é bem mais apertada quando o oponente é Rodrigo (47% a 41%) do que no confronto com o candidato republicano (54% a 36%).

Numa segunda rodada entre Haddad e Tarcísio os votos do tucano se dividem em 45% para o petista e 41% para o bolsonarista. Já na hipótese de Haddad contra Rodrigo, 64% dos eleitores de Tarcísio preferem o governador, e apenas 14%, o postulante do PT.

Em grande parte das disputas estaduais, parcela significativa do eleitorado, à diferença do que se observa no plano federal, ainda irá definir suas escolhas nas próximas duas semanas. E o quadro paulista é mais complexo por contar com três candidatos competitivos.

Longa Covid

Folha de S. Paulo

OMS vê pandemia perto do fim, mas danos à saúde pública são amplos e duradouros

Dois anos e meio depois de ter declarado o início da pandemia de Covid-19, a Organização Mundial da Saúde anuncia que a maior crise sanitária dos últimos cem anos parece finalmente chegar ao fim.

O diagnóstico alvissareiro veio do diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom, após o registro do menor número de mortes semanais pela doença desde março de 2020.

De 5 a 11 de setembro foram confirmadas, em todo o mundo, pouco mais de 11 mil vítimas. O Brasil, felizmente, vem acompanhando a tendência. A média móvel de 69 óbitos representa redução de 45% em relação ao dado de 14 dias atrás.

O quadro, segundo Adhanom, permite afirmar que o mundo "nunca esteve em melhor posição para acabar com a pandemia".

De acordo com a OMS, para alcançar tal objetivo é imprescindível que os países sigam aumentando a sua taxa de vacinação e mantenham uma ampla política de testes, bem como programas que permitam rastrear novas variantes potencialmente agressivas.

Embora tenha falhado de forma vexatória na maior parte desses requisitos, o Brasil ao menos ostenta boas taxas de imunização. Atualmente, cerca de 85% da população elegível já completou o esquema vacinal. Mas há que se avançar na administração da dose de reforço, ainda abaixo dos 60%.

Se o número de mortes e casos constitui a face mais visível da pandemia, hoje está claro que a extensão de seus impactos na saúde pública é muito mais amplo.

No primeiro ano da crise, as taxas de suicídio no Brasil, conquanto tenham se mantido estáveis no geral, cresceram entre mulheres (7%) e idosos (9%) na comparação com a média dos últimos dez anos, mostra estudo recém-publicado.

Os pesquisadores aventam como hipótese explicativa o fato de que, com os filhos em casa, o primeiro grupo tornou-se mais sobrecarregado, além de enfrentar um aumento das taxas de violência doméstica, ao passo que o segundo sofreu os efeitos de um isolamento social mais rígido.

Também preocupam as sequelas deixadas pela doença —a chamada Covid longa. Amplo estudo conduzido no país mostrou que 65% dos infectados desenvolveram ao menos uma condição crônica.

Tudo isso deve exercer ainda mais pressão sobre um já sobrecarregado SUS —e exigir das autoridades ações para lidar com consequências que irão perdurar para além da crise, por muito tempo.

O dever do Supremo de rever seus erros

O Estado de S. Paulo

A autoridade do Supremo é reforçada quando, em respeito à legalidade, eventuais equívocos são corrigidos. É chegada a hora de revisitar os inquéritos sobre os atos antidemocráticos

Nos conturbados tempos atuais, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem desempenhando um papel de grande relevância na defesa da Constituição, da separação dos Poderes e do regime democrático. Em momentos de especial aflição para a população – por exemplo, no início da pandemia, quando o Palácio do Planalto tentou usurpar competências dos Estados e municípios em relação à saúde pública –, a Corte assegurou o respeito ao princípio federativo. Também teve função decisiva na proteção do próprio Judiciário, ao garantir o andamento das investigações envolvendo ataques e ameaças contra o livre funcionamento da Justiça, em especial do STF.

Seria utópico, no entanto, achar que essa valiosa atuação do Supremo foi imaculada, sem nada a retificar. Não existe perfeição no exercício do poder, seja qual for a esfera, mesmo em tempos normais – e, menos ainda, em circunstâncias excepcionais. Os últimos anos foram rigorosamente fora do normal, com o presidente da República atacando o sistema eleitoral, promovendo manifestações golpistas contra o STF e o Congresso e anunciando que não cumpriria ordens judiciais.

Tudo isso conduz à seguinte constatação: o País precisa do Supremo. E precisa de um Supremo com autoridade, que atue exemplarmente. Essa exemplaridade não decorre de uma perfeição virtuosa – que, insistimos, não existe em nenhuma esfera –, mas de uma atuação que corrige, sem medo, eventuais erros e desvios. O Judiciário tem diversas instâncias de controle, também dentro de um tribunal, precisamente para que o erro seja localizado e retificado. Ou seja, a própria estrutura da Justiça, com seus mecanismos de controle, está montada para que não haja compromisso com o erro.

Desde o mês passado, o Supremo vem sendo muito questionado pela atuação do ministro Alexandre de Moraes no caso dos oito empresários bolsonaristas que, em conversas privadas, defenderam um golpe de Estado em caso de vitória do petista Lula da Silva na eleição presidencial de outubro. Na quarta-feira, o ministro rejeitou o pedido para transferir para a primeira instância a investigação, alegando que seria “prematuro” declinar as apurações à Justiça Federal em Brasília porque a Polícia Federal (PF) ainda está analisando o material obtido a partir da apreensão dos celulares dos empresários. Ontem, Alexandre de Moraes liberou as contas bancárias dos investigados, cujo bloqueio havia sido determinado no momento da deflagração da operação.

O caso está sob sigilo judicial – apenas algumas decisões tiveram o acesso liberado –, o que impede de fazer juízos definitivos, seja sobre a competência, seja em relação à legalidade das medidas ordenadas pelo ministro Alexandre de Moraes. De toda forma, diante dos elementos dos autos que já vieram a público, é pacífico dizer que as medidas – algumas delas não foram sequer solicitadas pela PF – se mostram desproporcionais, indo além do que determina a lei.

O reconhecimento de eventual exagero por parte do STF não é nenhum escândalo. Por exemplo, a revogação do bloqueio das contas dos oito empresários não trouxe nenhum demérito para a Corte. Ocorre o contrário. A autoridade do Supremo é reforçada quando, em respeito à legalidade, os equívocos são corrigidos. Não se preserva o necessário prestígio do Supremo à custa de esconder seus erros ou insistir neles.

Assim como todos os outros juízes e tribunais, o Supremo tem de respeitar o devido processo legal. Inquéritos têm prazo e objeto definido. A regra é a publicidade dos atos investigativos e judiciais. As normas de competência valem para todas as instâncias. As respectivas atribuições funcionais da polícia, do Ministério Público e do Judiciário têm de ser respeitadas.

É hora de o Supremo, em mais uma firme demonstração de defesa da Constituição e do regime democrático, revisitar – com serenidade, mas sem temor – os inquéritos relacionados aos ataques contra as instituições democráticas, dando a cada um o devido encaminhamento. Além de renovar a autoridade do STF, esse controle de legalidade será importante sinalização para todo o sistema de Justiça – muitas vezes, conivente com abusos mais sérios – e para a população. A lei é para todos. 

A preocupante expansão das milícias

O Estado de S. Paulo

Em 16 anos, milicianos ampliaram seu território em mais de 130% no Rio. Crescimento acelerado, capilarização do crime e defasagem das instituições de repressão são grande desafio

Há quatro décadas grupos armados expandem seu domínio territorial na região metropolitana do Rio de Janeiro. Segundo o Mapa dos Grupos Armados, do Grupo de Estudos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Fogo Cruzado, nos últimos 16 anos o crime organizado ampliou seus territórios em 131%, saltando de 8,7% da área urbana habitada para 20%. O fato novo é que as milícias estão se tornando a principal ameaça à segurança no Rio.

Nesse período, enquanto as áreas sob domínio do Comando Vermelho (CV) cresceram 59% e seu controle sobre a população cresceu 42%, o domínio territorial das milícias aumentou 387% e o populacional, 185%. Sua participação sobre as áreas controladas pelo crime subiu de 24% para 50%, enquanto a do CV caiu de 59% para 40%. No domínio sobre a população, se a participação do CV caiu de 54% para 46%, a das milícias subiu de 22% para 39%.

A pesquisa destaca dois marcos na expansão das milícias. O primeiro no início dos anos 2000, quando havia ambiguidade sobre o papel das milícias no debate público e nas arenas políticas. Esse crescimento foi freado a partir de 2008, quando a CPI das Milícias desbaratou parte da arquitetura do crime. Desde 2017, contudo, a expansão explodiu, em parte pelas disputas entre o CV e o PCC pelas rotas internacionais da droga, em parte pela crise socioeconômica de 2015, e em parte pela gestão de segurança estadual, que, desde o governo de Wilson Witzel, se caracterizou pelo incentivo ao uso desmedido de força letal e pela autonomização das polícias em relação a diretrizes, metas e protocolos estabelecidos por políticas de Estado.

A expansão das milícias não só é quantitativamente maior que a do narcotráfico, mas é qualitativamente mais complexa. “O tráfico de drogas é a criminalidade desorganizada; ele atua na interface com o Estado de maneira muito mais precária”, explicou um pesquisador. “Já os milicianos têm uma relação de tolerância e participação direta de agentes públicos. É um mercado de atuação muito mais diversificado e articulado do que o do tráfico, que é, basicamente, um varejo de droga. Os milicianos controlam a água, a internet, o transporte; ou seja, toda a infraestrutura urbana da cidade é produzida com a mediação desses grupos.”

Trafegando na zona cinzenta entre a legalidade e ilegalidade, as milícias contam com uma dupla vantagem, política e econômica. O que as diferencia é precisamente a participação de agentes públicos, como policiais da ativa e da reserva, juízes ou parlamentares. Assim, elas não só são mais eficientes que o narcotráfico em criar um “Estado paralelo” em seus territórios, como se infiltram no Estado, pervertendo-o a seu favor. Isso facilita, por exemplo, a obstrução de investigações, assim como o emprego das forças policiais para retaliar adversários do narcotráfico – os dados mostram que as ações policiais são bem menores em áreas controladas pelas milícias do que nas controladas pelas facções. Além disso, as milícias são favorecidas por agentes públicos em seu mercado legal e ilegal, sobretudo imobiliário.

A sua expansão impõe novos desafios. Primeiro, uma atualização da legislação, já que o complexo de crimes das milícias ultrapassa os delitos tipificados no Código Penal. Além disso, não há uma dimensão oficial do fenômeno nem políticas integradas de prevenção e enfrentamento. Operações policiais, além de frequentemente ineficazes e catastróficas para a população, vêm sendo instrumentalizadas pelas milícias a favor de sua expansão. Mais importante seria sufocar a fonte do vigor das milícias, o clientelismo de atores estatais, com mais regulamentação, transparência e prestação de contas sobre o que se passa nos mercados urbanos.

Em suma, a expansão das milícias é triplamente alarmante: pela sua velocidade e diversificação; pela sua capilarização na economia e na política; e pela defasagem das instituições responsáveis por investigá-la e reprimi-la. A menos que esse mal seja extirpado pela raiz, no futuro o Rio de Janeiro será lembrado como apenas o foco de uma metástase nacional. 

O inferno aqui e agora

O Estado de S. Paulo

Investigação da ONU evidencia genocídio cultural perpetrado pelo totalitarismo chinês contra as minorias uigures

Perseguições em massa a minorias étnicas e religiosas, campos de concentração, trabalhos compulsórios, lavagem cerebral, tortura, estupros, esterilização forçada. O leitor pode respirar aliviado, como quem desperta de um pesadelo, pensando que esses horrores foram sepultados nos tempos do Holodomor, em lugares como Auschwitz. Mas neste exato momento isso está acontecendo, não num rincão atrasado e obscuro, mas em uma superpotência, a China, na província de Xinjiang, onde a cultura de 11 milhões de uigures muçulmanos está sendo erradicada.

Mesquitas e cemitérios foram demolidos. Manifestações religiosas, como usar barba ou véu, criminalizadas. Os uigures são vigiados por câmeras de reconhecimento facial e softwares em telefones, e obrigados a dar mostras de DNA e escanear a íris para um banco de dados biométricos. Pesquisadores estimam em 2 milhões os detidos em campos de concentração, por violar políticas de “planejamento familiar” e praticar o islamismo. Nos “Centros de Treinamento Vocacional”, chamados “escolas” ou “hospitais”, os detentos são recuperados de sua “doença” ou “ideologia extremista”, sendo forçados, por exemplo, a raspar a barba, comer porco ou beber álcool como formas de renúncia ao islã.

O Partido Comunista chama isso de “desradicalização” e “contraterrorismo”. A ironia horrenda é que é difícil imaginar uma política mais bem talhada para gestar o extremismo.

Após três anos de investigação, um relatório, há muito procrastinado pelo lobby chinês, foi publicado pela comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, nas horas finais de seu mandato. Evidenciando “detenções arbitrárias em larga escala” ao menos desde 2017, o texto pede que o governo chinês investigue “alegações de tortura, violência sexual, maus-tratos, procedimentos médicos forçados, assim como trabalhos compulsórios e relatos de morte sob custódia”. É uma maneira eufemística de pedir que ele pare de perpetrar essas atrocidades. A ONU assevera, na linguagem ultracautelosa caracteristicamente reservada à China, que elas “podem” constituir “crimes internacionais” e “crimes contra a humanidade”.

Mesmo sob camadas de retórica evasiva, as evidências compiladas no relatório são um marco. “Ele pavimenta o caminho para uma ação consequente e tangível dos Estados-membros, corpos da ONU e a comunidade de negócios”, disse Dolkun Isa, presidente do Congresso Mundial Uigur, um grupo ativista. “A responsabilização começa agora.”

O Ocidente não pode evitar um engajamento realista com a China. A satisfação de seus anseios materiais depende de negócios com a China; a paz mundial, da convivência com seu regime; e desafios como a crise climática ou a saúde global, da cooperação com ele. A China é importante demais para ser ignorada. Mas assim o são seus crimes e ameaças. As atrocidades em Xinjiang exigem repúdio e sanções inequívocas aos envolvidos. Se prevaricar, nossa geração, que acreditava ter deixado os horrores de Auschwitz e Holodomor no passado, pode estar pavimentando o caminho para um futuro igualmente tenebroso.

Um comentário:

Anônimo disse...

Concordo plenamente, a China exerce com seu partido comunista em poder totalitário, atacando as minorias de forma covarde e radical O Lula recentemente elogiou o partido comunista chinês e disse que este serviria de modelo, porque é um partido forte , que uma vez determina um medida ninguém contradiz , o Lula mais uma vez mostrando seu lado ditador, como o é toda Esquerda Socialista