O Estado de S. Paulo
O que está em disputa hoje é quem defende
ou trabalha para romper o consenso sobre os direitos humanos e o regime
democrático.
Lembro-me como se fosse hoje. Era aluno num
conhecido ginásio em Belo Horizonte, e, entre uma aula e outra, numa roda de
conversa, o professor de Filosofia, ex-integralista, falava entusiasmado sobre
as vantagens do fascismo. Eu ouvia espantado, e disse que não poderia concordar
com aquilo, que eu vinha de uma família judia e muitos meus familiares haviam
sido assassinados nos campos de concentração. “Ah, entendo”, disse o professor,
“então você tem um problema pessoal com isso”.
Eram os anos da guerra fria, em que os Estados Unidos e a União Soviética e seus seguidores disputavam não somente a hegemonia internacional, mas também o lugar de quem melhor encarnava os valores dos que haviam se unido para conter o monstro do nazifascismo, proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Os Estados Unidos e a Europa Ocidental empunhavam as bandeiras da democracia, liberdades individuais e direito à propriedade, e a União Soviética, as bandeiras do fim da pobreza, desigualdade e exploração.
Dos dois lados, havia os que acreditavam
firmemente em suas bandeiras e apontavam o dedo para as violações cotidianas
desses direitos feitas pelo outro. Mas havia também os que viam como, em ambos,
a lógica do poder e de defesa dos interesses estabelecidos muitas vezes se
sobrepunha ao discurso humanitário. Na União Soviética, os últimos vestígios da
democracia participativa haviam sido enterrados pelos expurgos de Stalin, e nos
Estados Unidos os princípios da liberdade e igualdade eram violados diariamente
pela persistência da desigualdade social e do racismo. Internacionalmente, a
União Soviética impunha com mão de ferro seu poder sobre a Europa Oriental, e
os Estados Unidos, em nome da luta contra o comunismo e para defender os
interesses de suas companhias, apoiavam as ditaduras latino-americanas e os
remanescentes do colonialismo na África e na Ásia, muitas vezes de forma
sangrenta, como no Vietnã.
Para quem pensava que o mais importante era
a promessa dos direitos sociais, as restrições à democracia e aos direitos
humanos nos regimes socialistas eram vistas como “erros”, pequenos pecados que
poderiam ser eventualmente corrigidos, ou inevitáveis na luta contra os
inimigos e por um mundo melhor. Do outro lado, para quem valorizava sobretudo a
liberdade econômica e os direitos civis, a pobreza e o apoio a ditaduras
totalitárias eram também descontados como problemas circunstanciais, que
eventualmente seriam resolvidos num regime de liberdade política e econômica. E
havia os que concluíam que, no fundo, todos eram cínicos, a única coisa que
realmente importava era a disputa pelo poder político e econômico, e que os
discursos dos direitos humanos não passavam de um amontoado vazio de palavras.
Esta disputa entre valores, e de regimes
políticos que dão mais ênfase a umas partes do que outras dos direitos humanos,
marcou o mundo ao longo do século 20 e só foi interrompida pela novidade do
nazifascismo, que foi além do cinismo e passou a incorporar como valores a
guerra, a xenofobia, a violência, o racismo e a discriminação. Era uma doutrina
que se dizia inspirar em supostas tradições, identidades e sentimentos mais
profundos dos povos, muitas vezes de cunho religioso, diante dos quais os
discursos sobre valores e direitos, e a própria racionalidade abstrata das ciências
sociais e naturais, cultivadas, segundo eles, pelas elites cosmopolitas,
perdiam sentido.
A História mostrou o horror e o desastre
criados por essa doutrina, e os importantes resultados trazidos pela liberdade
política e econômica e pelos movimentos em prol dos direitos sociais. É
inegável que hoje, em todo o mundo e no agregado, existe menos pobreza, miséria
e opressão do que cem anos atrás, e que estamos muito mais próximos dos ideais
dos direitos humanos do que jamais estivemos. Mas a distância ainda é grande,
mais para determinados grupos e povos do que para outros, e o próprio progresso
gera expectativas que acabam se transformando em frustração e ressentimento.
É esse o caldo de cultura para o
ressurgimento das doutrinas fascistas e autoritárias, de valorização da
violência, xenofobia e ataque às instituições da democracia liberal. Mussolini,
afinal, fez os trens italianos andarem no horário, e o nazismo tirou a Alemanha
da depressão dos tempos da República de Weimar. Será que isso não é mais importante,
como pensava meu professor de Filosofia, do que a retórica da ética e dos
direitos?
É assim, também, que raciocinam muitos dos
que hoje, no Brasil, não dão maior importância ao crescimento da extrema
direita e a alimentam como a maneira mais prática de conseguir determinados
resultados. Mas o que está principalmente em disputa não é saber quem é mais ou
menos corrupto, ou quem dá mais prioridade à liberdade econômica ou aos
direitos sociais, e sim quem defende ou quem trabalha para romper o consenso
sobre os direitos humanos e o regime democrático, que, bem ou mal, nos
trouxeram até aqui. Eu tenho, sim, um problema pessoal com isso, e espero que
não seja só meu.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências
5 comentários:
Caro, Simon. O drama mundial é mesmo. De um lado a luta pelo direito de propriedade e de enriquecer. Do outro luta pela socialização da riqueza. Ambos os projetos pecam pela falta de democracia. Se sentindo ameaçado
"O que está em disputa hoje é quem defende ou trabalha para romper o consenso sobre os direitos humanos e o regime democrático"
DH e Dem são imprescindíveis. Mas, autor, sinto muitíssimo dizer, se tem quem tente romper o consenso .... é pq não há consenso.
Mas é como a ascensão de Hitler, Mussolini, Franco, o golpe de 64.
São todos erros mas têm apoio.
E o apoio foi o suficiente pra q se tornassem dominantes.
Nosso ditador ainda não se tornou dominante - graças a LULA (talvez surgisse outro oponente à altura na ausência deste mas nunca saberemos).
Sou de esquerda mas entendo melhor o liberalismo do q a direita (e muito mais do q o gado ou o bolsonaro, q de nada entendem).
Não é soberba. Apenas quero dizer q os EUA, q tanto querem imitar, a força animal, funcionou com problemas enormes.
Mas isso só funcionou lá. Até na Europa esta força é mantida sobre controle.
Mas suponhamos q possamos igualar (ou superar) os n.americanos se liberarmos geral.
QUAL O CUSTO EM VIDAS, EM MISÉRIA? (o palerma da República matou centenas de milhares na pandemia - gente comendo restos - voltamos ao mapa da fome...). Imaginem este custo por mais 50 ou 100 anos. E aí TALVEZ igualemos os EUA.
Mas há outro caminho, o da esquerda. Inclusão já. Não seremos tão competitivos? Levaremos mais tempo? Talvez. Mas se incluirmos todos, seremos mais fortes. MAS O CUSTO EM VIDAS E MISÉRIA COM CERTEZA SERÁ MENOR.
Bozo desvia dinheiro da saúde, da educação pro bolsolão. Na verdade ele não tem cérebro pra perceber as nuances esquerda/direita. Ele apenas se virou, com suas rachadinhas e seu cargo de pelego de milico. Ele não pensa no custo humano do hiperliberalismo; fodam-se, ele não é coveiro.
GENTE DEMAIS JÁ MORREU E SOFRE POR CAUSA DESTE NEFASTO REGIME ADOTADO PELO GENOCIDA.
EU NAO ESTOU DISPOSTO A PAGAR ESTE PREÇO. E NEM ACHO JUSTO TAL PREÇO!
Muito bom o texto da coluna. E concordo com o anônimo acima... O genocida nos colocou de novo no mapa da fome. Acho que não foi intencional, mas ele é tão incompetente e despreocupado com os pobres e miseráveis quanto seu ministro elitista Paulo Guedes. Acabaram com o auxílio social NO MEIO DA PANDEMIA... E foram obrigados a refazê-lo como única tentativa de se viabilizarem eleitoralmente. Conseguiram chegar ao segundo turno, apesar da imensa rejeição ao GENOCIDA! E elegeram uma penca enorme de milicianos mentirosos que vão participar do Congresso na próxima legislatura, junto com os marginais do Centrão que já são agora cúmplices de Bolsonaro.
Muito bom e esclarecedor o artigo.
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