Folha de S. Paulo
Cheiro de queimado nas ruas de Brasília é
só um sinal da emanação miasmática das ruínas
"Desgraceira" era o jeito
sertanejo de qualificar desastres como seca inclemente ou enchente que
arruinava casas e colheitas. Foi a expressão que Lula usou para o legado funesto dos quatro anos de
desgoverno federal. Melhor não há para sintetizar o diagnóstico da equipe de
transição sobre a tentativa de destruição do Estado: descontrole orçamentário e
apagão sistemático da máquina administrativa.
Aos olhos de todos, o desmonte vislumbrado no meio ambiente, segurança pública, educação, saúde e cultura não deixa qualquer dúvida quanto à queda das pontes institucionais entre o aparato estatal e a sociedade civil. Algo como se deparar com um edifício em escombros após um tremor de terra, encarar demandas e tarefas a serem atendidas, mas ter de levar em conta os miasmas ou a exalação pútrida das ruínas.
Esse aspecto de exalação talvez escape à
busca de solução imediata dos problemas pela equipe de transição, mas é algo presente na atividade social,
aquela que mais espelha a realidade dos fatos. Maior do que a
político-administrativa, ela implica assimilar e mentalizar a vida, tanto real
como imaginária, para recolocar de pé o cidadão frente ao desequilíbrio social.
Isso foi posto em perigo pela apropriação neofascista da política, a começar
pela corrupção do diálogo e da linguagem pública, em que nostalgias
reacionárias se conjugam pelo grotesco escatológico.
O cheiro de ferro e plástico queimado
consequente ao terrorismo negacionista nas ruas de Brasília é só
um sinal, mas grave, da emanação miasmática das ruínas. Tudo obriga a indagar
como se chegou a isso, como foi possível se assistir passivamente ao ataque
destrutivo contra o edifício institucional. Foi coisa deliberada. Tanto que,
logo alterada pelas urnas a liderança política, as elites caladas por quatro
anos horripilantes mostram-se subitamente ativas em cobranças quanto ao rosto
do novo governo. Nada estranho ao jogo da democracia, desde que essa
"atividade" esteja igualmente alerta para os fumos antidemocráticos
remanescentes.
Já nem tanto impressiona o fato de que
milhões de pessoas tenham compartilhado o horror, e delas um número expressivo,
de uma maneira entre o trêfego e o febril. É que cidadania democrática depende
de uma educação não limitada a ritos eleitorais, nem satisfeita por populismos
à esquerda ou à direita.
Em meio às mutações decisivas de comportamentos e valores, acontece cavar-se o
vácuo dos modelos políticos e, mesmo, dos padrões consensuais de dignidade.
Isso se passou entre nós. Daí o desastre que agora se contempla: uma
desgraceira, com o persistente mau cheiro de uma memória intolerável.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar
Nagô".
Nenhum comentário:
Postar um comentário