domingo, 18 de dezembro de 2022

Dorrit Harazim - País anda aos solavancos

O Globo

A vitória da frente comandada por Lula traz embutida uma oportunidade única de o Brasil encarar seu histórico de apagamento racista

Ninguém estranhou quando o presidente eleito, Lula, anunciou, dias antes de ser diplomado pelo Tribunal Superior Eleitoral, a formação do núcleo central do seu terceiro mandato. O quinteto escolhido recebeu acolhimento geral. Apenas aqui e ali apontou-se para o fato de Fernando HaddadFlávio DinoJosé Múcio MonteiroMauro Vieira e Rui Costa serem todos homens e quase todos brancos (o senador eleito Dino autodeclarou-se pardo pela primeira vez no registro eleitoral deste ano). Logo esse retrato seria corrigido. A necessária diversidade e inclusão verdadeira viriam à medida que a frondosa árvore de cargos ministeriais adquirisse seu formato final. O pecado original, porém, ninguém parece ter notado.

Passamos quatro anos denunciando o esfarelamento do ensino fundamental no país, a penúria imposta às universidades; aguentamos uma pandemia que deixou o Brasil de joelhos, e choramos a morte de 692 mil vítimas da Covid-19. O imperativo nacional de “melhorar a educação e a saúde” tinha virado mantra, quase que uma só palavra. Condição primeira para sair do atoleiro. O meio ambiente corria em paralelo como ponta de lança para apresentar o Brasil ao século XXI. Justamente nessas três áreas essenciais e prioritárias para a construção de um Brasil mais bem equipado para o futuro, o governo eleito dispõe de excelso naipe de ministeriáveis desde o início da transição. Pois nenhuma dessas três esferas — Educação, Saúde, Meio Ambiente — ainda integrou a comissão de frente do novo governo.

As pastas que receberam prioridade de decisão e urgência foram as convencionais: Fazenda, Justiça e Segurança Pública, Defesa, Relações Exteriores e Casa Civil. Em parte por default, pois mundo afora são os ministérios considerados de maior peso, poder ou prestígio. Mas também para aquietar os muitos desassossegados civis, militares, políticos ou papeleiros inconformados com a derrota nas urnas. Já era esperado que, com o país rachado ao meio e alimentado a ódio por quatro anos de bolsonarismo, a apertada vitória de Lula não haveria de significar uma nova Era de Aquário. Nem poderia. Mas ela precisa significar uma arrancada muito além da extirpação de Jair Bolsonaro da vida pública nacional. A vitória da frente republicana comandada por Lula traz embutida uma oportunidade única de o Brasil finalmente encarar seu histórico de apagamento racista e desigualdades sociais. Para tentar alterar esse curso passado, só mesmo com audácia transversal e gana de visionário. Começando pela Educação.

Tudo ainda é muito recente, sabemos. Transcorreu só pouco mais de um mês desde a grande virada democrática nacional. E o vencedor nem tomou posse no Palácio do Planalto ainda. Mas é nesse lusco-fusco entre o ontem e o amanhã que determinados terrenos cedidos se tornam irrecuperáveis mais adiante. Com a política convulsionada pela urgência na aprovação da PEC da Transição, e diante do apetite dos legisladores em manter a qualquer custo o que restar do seu orçamento secreto, a República Federativa do Brasil anda aos solavancos. E os novos tempos parecem já nascer esmaecidos — de fato, como pensar em “novos tempos” se, por ora, a figura pantanosa do presidente da Câmara, Arthur Lira, está empenhada em demonstrar que nada mudou? Ele quase consegue, se considerarmos que uma das preocupações do momento, em Brasília, é ampliar ainda mais a já generosa imunidade que gozam os parlamentares.

Dias atrás, a cientista política americana Claudine Gay foi a primeira mulher negra nomeada para o cargo de reitora da Universidade Harvard. Recebida com ovação na centenária instituição, ela falou do fim da ideia da academia como uma torre de marfim:

—Não existimos fora da sociedade, mas como parte dela. Isso quer dizer que Harvard tem o dever de participar do mundo, engajar-se com ele e estar a seu serviço.

Se adaptado, vale para os donos do poder no Brasil. E para quem não é dono de nada, mas votou por um Brasil com futuro, cabe exigir o máximo possível dos eleitos. É nossa obrigação permanente.