Mudança no sistema tributário deve começar pelos impostos sobre consumo, com unificação de tributos e limitação de isenções que beneficiam mais o topo da pirâmide
Por Cassia Almeida / O Globo
RIO - Os impostos sobre consumo, que
incidem sobre produtos e serviços, tornam o sistema
tributário do país ainda mais desigual. As alíquotas diferentes para
cada produto e isenções beneficiam mais o topo da pirâmide de renda, levando os
mais pobres a pagarem proporcionalmente mais tributos que os mais ricos. Um dos
desafios do novo governo é avançar com uma reforma tributária que consiga
aumentar a eficiência da economia e, ao mesmo tempo, reduzir a desigualdade.
Especialistas dizem que unificar impostos e eliminar o efeito cascata dos
tributos sobre consumo são os primeiros passos para tornar o sistema tributário
mais justo.
A escolha do economista Bernard
Appy para ocupar o cargo de secretário especial para reforma
tributária mostra que a mudança nos impostos é uma das prioridades do governo
eleito. Ele é um dos maiores especialistas no sistema tributário brasileiro e
autor de proposta que tramita no Congresso de unificação dos impostos indiretos
(PIS/Cofins, ICMS, IPI e ISS) no Imposto de Bens e Serviços (IBS), com poucas
alíquotas e sem impostos em cascata. Um modelo já usado no mundo inteiro há
décadas.
Há duas propostas em tramitação: a PEC 45/2019, que já foi aprovada em comissão especial e aguarda votação no plenário da Câmara, e a PEC 110/2019, que tramita no Senado. Após as discussões, as propostas se aproximaram, com a diferença que a PEC 45 propõe um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) único, enquanto a PEC 110 estabelece um imposto dual, com um tributo para União e outro para estados e municípios.
Estudo da Débora Cardoso Freire, professora
da UFMG, juntamente com Edson Paulo Domingues, da mesma universidade, mostra
que a reforma tributária que está tramitando no Congresso reduz o Índice de
Gini — que mede a desigualdade na distribuição de renda — em 2%.
—Só em tirar os impostos em cascata já
reduz o custo de produção de itens mais consumidos pelos mais pobres. —explica
Débora. — Há grandes chances de (a reforma) acontecer no ano que vem. É
prioridade do governo eleito. As propostas estão bem maduras e as discussões,
bem avançadas.
Guerra fiscal
Uma das desigualdades mais latentes
provocada pelo sistema atual tem relação com as isenções da cesta básica, pois
beneficia todos sem distinção de renda. Simulações feitas no Rio Grande do Sul
indicam que o benefício per capita com as isenções é de R$ 95 para famílias com
renda de até dois salários mínimos, subindo para R$ 345 para que têm renda
acima de 25 salários mínimos.
Ao desonerar a carne para a cesta básica,
isenta-se também o filé mignon e a picanha do pagamento de PIS/Cofins, por
exemplo. Larissa Luzia Longo, pesquisadora do Núcleo de Tributação do Insper e
do Centro de Cidadania Fiscal, explica que não é viável determinar cada produto
de um grupo de alimentos. Por isso, desonera-se o grupo inteiro:
— O produto desonerado é carne, não dá para
segmentar tanto, porque o custo de fiscalizar fica inviável. Por isso, carnes
nobres acabam isentas.
E há ainda as isenções que acabam sendo
inseridas na lista sem explicação:
— Toda a vez que a gente abre espaço para
isenções e redução de alíquotas, acabam aparecendo umas bizarrices, com isenção
para salmão, caviar, foie gras. No Mato Grosso do Sul, carne de jacaré entrou
na lista de isenções — diz Marina Thiago, gerente do Movimento Pra Ser Justo,
que reúne entidades que defendem a reforma tributária.
A desigualdade cai muito pouco com os
benefícios tributários que são dados aos alimentos, segundo Marina. Estudo do
Banco Central mostra que o Índice de Gini cai apenas 0,1%, com a perda anual de
R$ 18,6 bilhões na arrecadação.
A guerra fiscal entre os estados, para
atrair investimento para seus estados, também agrava a desigualdade e tem como
efeito colateral tornar serviços essenciais, como energia elétrica e
telecomunicações, os mais tributados.
— Não se discute o problema grave que é a
guerra fiscal erodindo a base de arrecadação dos estados. Sobram três produtos
e serviços que são imunes à guerra fiscal, combustíveis, telecomunicações e
energia, que concentram os tributos — afirma o economista Rodrigo Orair,
pesquisador licenciado do Ipea.
Uma lei federal aprovada no fim de junho
determinou que esses três itens se tornassem bens essenciais, limitando a
alíquota de ICMS sobre eles a 17% ou 18%. Mesmo com o corte, eles ainda são
mais tributados que outros serviços. Educação e saúde privadas, usados pelos
mais ricos, têm carga de 11,8% e 6% respectivamente.
— Produtos agropecuários e alimentares,
têxteis, vestuário e calçados são mais tributados que serviços de estética,
hotelaria, academia, mais consumidos pelos mais ricos — exemplifica Orair.
Disparidade regional
A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF),
do IBGE, mostra a diferença no consumo desses produtos e serviços. O peso do
vestuário na cesta de compras das famílias com renda até R$ 1.908 é o dobro do
que entre as famílias com ganhos acima de R$ 23.850. Na alimentação, é o
triplo.
Há ainda a desigualdade regional. Os
benefícios e isenções fiscais que somaram R$ 444 bilhões este ano de renúncia
fiscal ficaram concentrados nos municípios mais ricos. Pelas contas do
Ministério da Economia, 20% dos municípios mais ricos ficam com 29,6% dos
benefícios fiscais federais, enquanto os 20% mais pobres com 2,4%.
elas contas divulgadas pelo movimento Pra
Ser Justo, o município que tem a maior arrecadação per capita pode gastar 202
vezes mais com cada habitante do que o município com o menor recolhimento. Com
a reforma, essa diferença cai para 20 vezes.
—A reforma tributária não é só sobre
simplificação, tem potencial muito grande de tornar o sistema mais progressivo
(a carga tributária cresce conforme aumenta a renda) e com menos desigualdade
regional. A reforma da tributação do consumo tem um poder muito grande nessas
duas frentes— afirma Marina, do Movimento Pra Ser Justo.
R$ 6 tri em processos
Uma maneira de intensificar os efeitos
distributivos da reforma é devolver parte dos impostos para os mais pobres. Se
feita a devolução do imposto cobrado aos 30% mais pobres, a melhora na
distribuição de renda é de 3,2%, segundo o estudo de Débora, da UFMG. A
devolução dos tributos seria feita para os inscritos no Cadastro Único do
governo federal, porta de entrada para conseguir benefícios sociais.
Em novembro do ano passado, o Rio Grande do
Sul começou a implantar esse modelo no ICMS, com a devolução em um cartão para
as famílias de menor renda, inscritas no Cadastro Único. O alvo são 591 mil
famílias, e eles já alcançaram 406 mil, que retiraram o cartão para receber os
R$ 100 trimestrais.
— Pelos nossos cálculos, a carga fiscal
para essas famílias vai cair de 8% para 4% — diz Ricardo Neves Pereira,
subsecretário da Receita Estadual.
Com uma infinidade de alíquotas e isenções, o Brasil acumula estoque de ações na Justiça e administrativa trilionário, estimado em 75% do Produto Interno Bruto (PIB), mais de R$ 6 trilhões. É o caso da farinha de rosca. Pão e farinha de trigo são isentos de PIS/Cofins, mas a farinha de rosca que é pão triturado, não. Foram seis anos de discussão, com a questão indo até o tribunal superior para decidir se a farinha de rosca teria direito à alíquota zero.. E o tribunal decidiu contra a farinha de rosca.
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