Folha de S. Paulo
É natural que a descrição dessa passagem de
poder oscile entre referências realistas e imaginárias
O governo
Lula dispõe-se a desarmar corpos e espíritos. O problema é saber qual
a realidade visada, se a real-histórica ou a paralela. Um lance pertinente: na
última sexta-feira de 2022, hasteou-se a bandeira a meio-pau no QG de Brasília,
em homenagem a Pelé. Lá fora, para os acampados, era o sinal
do golpe imaginado. Seguiu-se uma profusão de louvações aos céus e, frente aos
vídeos, um homem corpulento bradava "perdeu, mané".
Na realidade paralela, o perdedor transformava-se em vitorioso. No real-histórico, naquela mesma hora, o verdadeiro derrotado já estava a bordo de um avião militar rumo à Flórida. A sequência de eventos é miúda, mas tem carga simbólica. Primeiro, a fuga patética do mandatário pela lateral do palácio, sem aviso público. Depois, Orlando constava como destinação real, mas no imaginário coletivo era mesmo a Disney, o Shangri-la pequeno burguês que o ex-ministro da economia achava incompatível com empregadas domésticas. O desgoverno fantasioso de verdade dava lugar aos parques temáticos da fantasia.
É natural que a descrição dessa passagem de
poder oscile entre referências realistas e imaginárias. Estas últimas sempre
estiveram e continuam ativas na realidade construída pela rede fechada de
desinformação do extremismo, em que a sociedade se desenha como uma Babel de
caos e perdição. Não se desarma de um dia para outro uma máquina de destruição
do sentido da história e do senso comum, em que o verossímil parece abduzido
por aliens. Sobre a transmissão do cargo, disse uma manifestante:
"Essas imagens da posse de Lula são montagens da mídia, recuso-me a
acreditar".
Em 1975, avaliando a Revolução dos Cravos, Jean-Paul Sartre observou que alguns
jornais portugueses ainda não haviam percebido que "acabou a ditadura e
querem continuar imbecilizando o povo". Entre nós, ao contrário, a
imprensa corporativa dignificou a informação, em confronto com um setor da
esfera digital, ávida por monetização de conteúdos a qualquer preço moral.
Nesta, ex-mandatário ainda manda.
Esse setor da rede eletrônica constitui-se
hoje como intelectual orgânico coletivo de facções extremistas. Como rede e
público são culturalmente a mesma coisa, os dispositivos imbecilizam ao mesmo
tempo em que são imbecilizados. Em termos hermenêuticos, a expressão
"perdeu, mané" é um vigoroso corte real, de fundo psicanalítico. É
imperativo aplicá-la com rigor de lei às retropias do terror doméstico que, de
tão familiares, na risonha avaliação do novo ministro da Defesa, poderiam "esvair-se".
No entanto, persistem. Enquanto isso, na frente do QG, acampam cachorros de rua
atraídos por lixo e resquícios de churrasco. Estes não darão ouvidos a ovnis.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar
Nagô".
Um comentário:
Pois é...
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