segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

É desafio enorme provar a hipótese de genocídio ianomâmi

O Globo

Mesmo que se comprove a omissão do governo Bolsonaro, será difícil demonstrar que ela foi intencional

A tragédia ianomâmi suscitou nas instituições a reação necessária de busca por responsáveis. O ministro da Justiça, Flávio Dino, pediu à Polícia Federal a abertura de inquérito para apurar crimes ambientais, omissão de socorro e genocídio. O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou apuração de crimes ambientais, de desobediência, quebra de segredo de Justiça e também genocídio. Os alvos da investigação, ainda sigilosa, estão vinculados ao governo Jair Bolsonaro.

A acusação que desperta a maior controvérsia é a de genocídio, bordão entre opositores de Bolsonaro, ouvido também em declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se do crime mais hediondo, definido nos textos legais como atos cometidos “com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. No caso dos ianomâmis, está satisfeita a característica mais importante do genocídio: o caráter coletivo do alvo, um grupo étnico indígena.

A definição foi criada pelo jurista Rafael Lemkin em 1944 para tipificar os crimes cometidos pelos nazistas contra judeus e outras minorias enquanto grupos. Mas sempre foi um crime difícil de comprovar. Nenhum nazista foi condenado por genocídio no Tribunal de Nuremberg, como queria Lemkin. Nenhum integrante do Khmer Rouge foi condenado por genocídio, apesar do extermínio de 2 milhões no Camboja. As condenações mais relevantes foram contra a matança dos tutsis em Ruanda e pelo massacre de muçulmanos em Srebrenica, na Bósnia.

No Brasil, a lei de 1956 que pune o genocídio já foi aplicada contra cinco garimpeiros pelo assassinato de 12 ianomâmis, entre os quais cinco crianças, a tiros e facadas em 1993. Desta vez, as acusações sustentam que houve atrocidades como resultado de omissão criminosa do governo. Documentos citados por Barroso “sugerem um quadro de absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos, bem como (…) ação ou omissão, parcial ou total, por parte de autoridades federais”.

Será preciso ainda examinar em detalhes o teor da investigação sigilosa para saber se ela é capaz de embasar acusações tão graves contra autoridades. As dificuldades são imensas. Será preciso primeiro demonstrar com provas eloquentes a responsabilidade de cada elo na cadeia de comando. Em seguida, provar a intenção de aniquilar os ianomâmis, condição essencial para tipificar o genocídio. Nada disso está claro.

Parece evidente, é certo, que a tragédia foi provocada por omissão do governo. Entre abril e novembro de 2022, a Funai recebeu 36 alertas de organismos nacionais e internacionais, entre eles a própria ONU, sobre a gravidade da situação entre os ianomâmis. Ao que tudo indica, pouco — se algo — fez para socorrê-los. Comprovar a omissão, porém, não bastará para mostrar que ela tenha sido intencional, com o objetivo implícito de aniquilá-los. Muito menos que tenha contado com aval ou participação do ex-presidente.

Quando deputado, Bolsonaro lutou contra a demarcação das terras ianomâmis e sempre proferiu disparates contra os indígenas. Na presidência, esvaziou os órgãos de fiscalização e implantou políticas lenientes com o garimpo ilegal, origem da tragédia humanitária. Será difícil para as autoridades comprovar que essa era a intenção dele ou de qualquer integrante de seu governo. Mas isso não significa que a hipótese não deva ser investigada.

Concessão do novo Canecão será benéfica para o Rio e para o Brasil

O Globo

Nova casa de espetáculos para 3 mil espectadores resgatará endereço histórico da cultura nacional

Em meio às turbulências da política, passou quase despercebida uma grande notícia para o Rio, para o Brasil e a cultura nacional: o anúncio da construção do novo Canecão, que sucederá a histórica casa de espetáculos, fechada em 2010 depois de uma longa batalha judicial dos inquilinos com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dona do espaço em Botafogo, Zona Sul do Rio.

Com um lance de R$ 4,35 milhões e ágio de 596%, o consórcio Bonus-Klefer venceu o leilão organizado pela UFRJ e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para erguer o novo prédio, cuja inauguração está prevista para 2025.

O novo Canecão será construído no campus da UFRJ na Praia Vermelha, perto de onde funcionva o antigo. Deverá ter pouca semelhança com o original. O projeto é fazer um espaço multiúso de 15 mil metros quadrados com estrutura para shows, musicais e peças de teatro. O consórcio vencedor promete investir R$ 184,3 milhões na concessão, válida por 30 anos. A nova casa deverá ter capacidade para 3 mil espectadores. O pacote inclui também a construção de 70 salas de aula, refeitório, sala para exposições científicas, um parque aberto e a restauração de um painel de Ziraldo que decorava a fachada da antiga casa. O projeto final ainda será submetido à aprovação da universidade.

Aberto em 1967 como cervejaria, o Canecão foi transformado em casa de espetáculos dois anos depois. Ao longo de décadas, se tornou referência na cidade e no país. Por seu palco passaram atrações internacionais e os maiores nomes da MPB. A relação com a universidade sempre foi conflituosa. As disputas levaram ao fechamento definitivo. Desde 2010 o prédio se degrada.

No dia do leilão, alunos e funcionários fizeram um protesto e chegaram a interromper o certame por uma hora. Alegam não ter sido ouvidos sobre a proposta. A UFRJ argumenta que a concessão, aprovada pelo Conselho Universitário, foi amplamente discutida com a comunidade. Discordâncias fazem parte do jogo democrático. Os pontos positivos da iniciativa, porém, excedem em muito os negativos. O principal é devolver ao Rio um de seus maiores palcos. A universidade, cujo orçamento não supre sequer as necessidades básicas, não dispõe de recursos para reerguer o Canecão, muito menos para mantê-lo. Nada mais natural do que recorrer à iniciativa privada.

Todos ganharão. A UFRJ receberá novas instalações sem precisar gastar o dinheiro que não tem. Os empresários administrarão um espaço multiúso numa área privilegiada. A cidade e o país terão de volta um palco que fez história. O meio cultural disporá de instalações modernas para espetáculos. E o público recuperará o velho endereço. Todos perderiam se o velho Canecão continuasse fechado, sofrendo degradação lenta e constante.

Passado incerto

Folha de S. Paulo

Decisão do STF acentua incerteza jurídica com a caótica legislação tributária

Trouxe perplexidade a decisão do Supremo Tribunal Federal, na semana que passou, pela qual os contribuintes que obtiveram decisões transitadas em julgado pelo não recolhimento de CSLL estarão, agora, sujeitos ao pagamento retroativo à data em que a corte decidiu pela constitucionalidade do tributo.

O que estava em pauta no STF não era a legalidade da cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, tema já pacificado desde 2007, mas os limites da coisa julgada em matéria tributária.

Por unanimidade, o tribunal definiu que uma alteração do entendimento sobre a aplicação de um tributo cessa os efeitos de uma medida anterior em sentido contrário.

Até aí, não há controvérsia excessiva, na medida em que um direito adquirido por algum contribuinte não pode suplantar uma nova interpretação de repercussão geral por parte do Supremo.

A surpresa foi a decisão, por 6 votos a 5, de não aplicar uma modulação. Na prática, as pessoas jurídicas que contavam com decisão definitiva contrária à cobrança agora poderão ter de recolher a CSLL desde 2007, e não apenas a partir do momento atual.

Pior ainda, dada a complexidade do sistema tributário nacional, especialmente na parte de cobranças cumulativas de impostos e bases de incidência, o entendimento do STF abre espaço para que sentenças transitadas em julgado relativas a outros tributos também sejam reformadas sem modulação.

A incerteza jurídica e financeira pode ser avassaladora para muitas empresas nacionais.

O tema sem dúvida é complexo. De um lado, a inviolabilidade de uma sentença final, principio basilar do direito e da Constituição que garante a segurança jurídica. De outro, a necessidade de isonomia econômica entre contribuintes, alguns sujeitos ao pagamento e outros beneficiados pelas decisões definitivas anteriores.

Era preciso compatibilizar as duas preocupações, ambas essenciais, mas o próprio Supremo tem parcela de culpa por deixar o problema crescer ao ponto atual.

A demora de quase duas décadas para esclarecer pontos tão cruciais não deveria resultar em pesados pagamentos retroativos. Quando a assimetria é contrária ao fisco, é frequente a corte adotar modulações. Não foi o caso agora.

Cobrar apenas para a frente traria menos riscos, não apenas nesse caso, mas principalmente para os outros que agora serão objeto de ainda mais controvérsia.

Fica demonstrado, assim, o estado de calamidade a que chegaram a legislação e a interpretação dos tribunais em matéria tributária. A difícil reforma, hoje de volta à pauta no Congresso, mostra-se novamente urgente.

Anomalia militar

Folha de S. Paulo

STF demora para limitar tribunais fardados no julgamento de crimes contra civis

O Supremo Tribunal Federal voltou a debater o alcance dos poderes da Justiça Militar no país, tema que se arrasta injustificadamente desde 2013, quando a Procuradoria-Geral da República ingressou com ações a respeito na corte.

Espera-se que o STF decida, finalmente, se crimes cometidos por agentes das Forças Armadas em operações de segurança pública devem ser julgados por órgãos militares ou pela Justiça comum.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade ora analisada mira duas leis assinadas por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2004 e 2010, que conferem essa competência às cortes militares. Em 2017, o governo de Michel Temer (MDB) ainda incluiu o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares nas operações.

Na contramão de países como a Argentina, que aboliu a Justiça Militar em 2009, o STF tarda em afirmar o princípio de que instituições da caserna não devem julgar violações cometidas por seus próprios pares, ainda mais contra civis.

Até o momento, o placar está em 3 a 2 para a manutenção da competência da Justiça Militar —com votos do ex-ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso, e dos ministros Alexandre de Moraes e Roberto Barroso, ante os de Edson Fachin e Lewandowski.

Tribunais castrenses são, no Brasil, um misto de juízes togados e, em sua maioria, de agentes militares, privilegiando o espírito corporativista, não apenas a lei.

O Superior Tribunal Militar (STM), por exemplo, é composto majoritariamente por fardados e não exige formação jurídica, apenas respeito à disciplina das Forças Armadas. Tal configuração de uma instituição de justiça é inaceitável.

Casos ilustrativos foram as mortes do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de material reciclável Luciano Macedo, fuzilados com mais de 200 tiros durante ação de soldados do Exército no Rio de Janeiro, em 2019.

Oito envolvidos foram condenados pela Justiça Militar, em 2021. Note-se, entretanto, o placar apertado (3 votos a 2) e a temeridade de se permitir, no regime democrático e republicano, que um crime praticado por militares contra civis seja julgado por oficiais da ativa que, muitas vezes, não possuem formação na área do direito.

Já passou da hora de restringir as cortes militares. Faria bem ao STF e ao Congresso revisitar a ideia basilar de que a Justiça, além de equidistante, não deve usar farda.

A ofensiva contra as agências reguladoras

O Estado de S. Paulo.

Não surpreende essa batalha que une Centrão, bolsonarismo e lulopetismo.

As agências reguladoras estão sofrendo múltiplos ataques. Já no primeiro dia do novo governo Lula, a Medida Provisória (MP) 1.154 desmembrou a Agência Nacional de Águas (ANA) e transferiu sua função de regular o saneamento básico ao Ministério das Cidades. A manobra é eivada de ilegalidades, a começar pelo fato de que a competência da ANA foi instituída pelo Marco do Saneamento e só pode ser alterada por lei.

Mas o balão de ensaio aguçou apetites. Uma emenda “jabuti” (n. 54) à MP propõe retirar das 11 agências a autonomia para regular e editar atos normativos, restringindo-as à fiscalização de contratos. As regras passariam a ser determinadas por “conselhos” subordinados aos ministérios, em tese formados por membros do governo, do setor regulado e dos consumidores. Na prática, a escolha e a manutenção dos conselheiros estariam ao arbítrio do governo e seus aliados políticos, esvaziando a razão de ser das agências: regular o setor através de uma gestão isenta pautada por critérios técnicos.

As agências foram criadas na década de 90, quando a gestão FHC promoveu a transição do Estado empresário para o Estado regulador. A ideia de fundo é que serviços públicos não precisam ser prestados por empresas estatais, mas podem sê-lo por empresas privadas, desde que atendam ao interesse público. E, de fato, a experiência mostra que eles tendem a ser mais bem prestados pela iniciativa privada, que, em geral, conta com mais capacidade técnica e financeira.

Para garantir o interesse público, era fundamental que os serviços prestados pelas concessionárias seguissem regras determinadas por autarquias técnicas e equidistantes do poder concedente, das empresas reguladas e dos consumidores. A autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira é crucial para evitar a distorção das regras por grupos de pressão – especialmente das duas partes fortes da tríade, os enclaves político-partidários e os grandes grupos econômicos – e garantir a estabilidade e a transparência que fomentam a competitividade e atraem investimentos.

Nesse arranjo, o Legislativo é responsável pelas leis do setor; o Executivo, pelo planejamento setorial e pela implementação de políticas públicas; e as agências, por decidir assuntos de natureza técnica, dentre os quais a regulação econômica e a resolução de conflitos a ela associados. Os diretores, indicados pelo Executivo e aprovados pelo Legislativo, têm de comprovar qualificação técnica; respeitar quarentenas em relação à atuação política e empresarial; têm mandato fixo e autonomia decisória; e são obrigados a prestar contas ao Legislativo.

O PT sempre foi hostil às agências. Nas gestões lulopetistas elas foram enxovalhadas por tentativas de ingerência política, loteamento partidário, asfixia orçamentária e vacâncias prolongadas das diretorias, a tal ponto que o Congresso estabeleceu em 2019 uma lei para blindá-las desse desvirtuamento.

Mesmo assim, com seus aliados do Centrão, Jair Bolsonaro tentou de todas as formas restringir a independência das agências. Quando não conseguia, caracteristicamente apelava ao constrangimento pessoal de seus diretores. Deus sabe quando os brasileiros teriam acesso às vacinas para a covid se a visão do PT tivesse prevalecido e Bolsonaro pudesse exercer todo seu arbítrio sobre a Anvisa.

As agências, em resumo, representam uma barreira institucional ao partidarismo, ao patrimonialismo e ao corporativismo. É exatamente isso que irrita tanto as falanges políticas fisiológicas e clientelistas quanto as ideológicas e autoritárias. Não surpreende que o Centrão, o lulopetismo e o bolsonarismo cerrem fileiras no intuito de esvaziá-las. Tal como com outros marcos projetados para garantir que políticas de Estado não estarão submetidas aos apetites imediatistas e paroquiais dos governantes de turno e de grupos econômicos a eles associados – como a Lei das Estatais, a Lei de Responsabilidade Fiscal ou a independência do Banco Central –, a batalha contra as agências é só uma das frentes da grande guerra pela perpetuação do capitalismo de compadrio.

O governo ‘fraco’ abriu para negócios

O Estado de S. Paulo.

Mal começou, governo Lula admite não ter base sólida e quer driblar a lei para liberar R$ 3 bi em emendas a deputados que não teriam direito a elas; eis o modo petista de governar

Segue vivíssima na cabeça do presidente Lula da Silva a ideia segundo a qual a construção de uma base de apoio ao governo no Congresso pode prescindir da negociação política em torno de projetos e se dar por meio da relação mercantil com parlamentares oportunistas dispostos a vender seus votos por dinheiro. “O uso do cachimbo entorta a boca”, diz o provérbio. Ao que parece, as lições dos escândalos do mensalão e do petrolão, durante o mandarinato lulopetista, e do orçamento secreto, urdido por Jair Bolsonaro, não foram assimiladas nem pelos que compram nem pelos que vendem convicções.

O Estadão revelou que o Palácio do Planalto abriu para negócios e articula com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), maneiras de driblar a lei para garantir que 219 deputados federais de primeiro mandato, empossados há poucos dias, possam dispor de cerca de R$ 3 bilhões do Orçamento de 2023 em emendas parlamentares, algo em torno de R$ 13 milhões para cada deputado.

De acordo com a lei, esses parlamentares não têm direito de indicar nem um centavo em emendas para suas bases eleitorais em 2023. A razão é simples: o Orçamento de 2023 foi elaborado no ano passado. Os 219 novatos, portanto, só poderão indicar emendas ao Orçamento de 2024, a ser elaborado pela nova legislatura.

Mas, ao que parece, essa vedação legal elementar é apenas um detalhe diante da urgência do governo Lula de criar uma base de apoio para aprovar projetos de seu interesse e da necessidade de Arthur Lira de retribuir todos os 464 votos que garantiram sua reeleição para a presidência da Câmara por um placar recorde. Caso clássico de cortesia com chapéu alheio.

As tratativas são tão escancaradas que nem um petista de quatro costados, como o deputado Jilmar Tatto (PT-SP), um dos possíveis beneficiários do acerto, faz questão de esconder seus propósitos. “Se o governo estivesse forte”, disse Tatto ao Estadão, “poderia não dar (emendas) para os novos. Mas tem uma reforma tributária, não dá para pagar para ver. Se não for esse valor (R$ 13 milhões por deputado), uma parcela significativa vai ter.”

Ainda não se sabe exatamente de que forma, do ponto de vista técnico, os deputados novatos serão agraciados com os R$ 3 bilhões do Orçamento de 2023, mas, a julgar pela disposição dos petistas, alguma “mágica” será feita. Ninguém duvida.

Se o governo é “fraco”, como admitiu o deputado petista, porque os eleitores não elegeram parlamentares alinhados ideológica e programaticamente ao presidente da República, o correto – e republicano – seria o presidente Lula apresentar ao País um programa de governo digno do nome e despachar seus emissários políticos para negociar a construção de maiorias com o Congresso. É assim que funciona, ou deveria funcionar, o presidencialismo de coalizão, um regime tão característico do País.

Numa democracia, é legítima a divisão de poder entre forças políticas representativas da sociedade, seja por meio da distribuição de cargos na administração pública direta e indireta, seja pela disposição de recursos do Orçamento da União. Mas essa negociação, evidentemente, tem de se pautar pelo respeito às leis e à Constituição, além de ser orientada pelo interesse público.

O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, confirmou ao Estadão a existência de tratativas entre o governo e a presidência da Câmara para liberar recursos do Orçamento de 2023 aos deputados recém-empossados. “Se (os novatos) tiverem bons projetos, boas propostas”, disse Padilha, “podem ser contemplados pelo governo.” Como sempre, o PT julga que os fins justificam os meios: se os projetos forem “bons” (para quem, não se sabe) e se os parlamentares premiados votarem com o governo, dá-se um peteleco na lei e no interesse público.

A abertura desse balcão de negócios com pouco mais de um mês de governo é bastante ilustrativa da visão desvirtuada de Lula e do PT sobre a natureza da relação entre os Poderes Executivo e Legislativo. Indica também como alguns parlamentares, logo no primeiro mandato, já se mostram dispostos a colocar seus interesses paroquiais acima das leis e de uma agenda de reconstrução nacional.

A persistência da fome

O Estado de S. Paulo.

Pela terceira vez desde 1975, Campanha da Fraternidade aborda a fome, prova do fracasso do País

Em 2023, a Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) será dedicada à fome. É uma resposta à calamidade que se disseminou após a recessão, a pandemia e a guerra na Ucrânia. Mas tanto quanto essa escalada é dolorosa, é vergonhosa a resiliência da fome. É a terceira vez, desde 1975, que a Campanha da CNBB se vê obrigada a apelar aos corações e mentes dos brasileiros contra a fome.

Em uma teoria bastante popular sobre o desenvolvimento pessoal, o psicólogo Abraham Maslow sugere uma hierarquia com três escalas de necessidades. Primeiro, as fisiológicas: comida, água, abrigo, repouso. Depois, as psicológicas: pertencimento, amor, estima. Finalmente, as espirituais: a satisfação de todo potencial e criatividade individual. Em que pesem as matizações a esquemas como esse, é intuitivo que um indivíduo não pode se motivar plenamente para realizações mais elevadas enquanto estiver lutando pela mera subsistência.

O Brasil é um dos países mais violentos do mundo, em que 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e 100 milhões ao esgoto. Nos últimos sete anos a fome dobrou e, segundo a ONU, fustiga 15,4 milhões de brasileiros.

A fome choca por três paradoxos: primeiro, o de um país que é, a um tempo, “celeiro do mundo” e curral de famélicos; segundo, entre a quantidade de comida que falta nos pratos e a que apodrece nos lixos – o Brasil desperdiça um terço de seus alimentos –; terceiro, o de uma escalada da fome concomitante a uma escalada da obesidade. Mais do que contradições insolúveis, esses fatos refletem um contraste entre a carência e a abundância que pode ser solucionado se reduzindo a distância entre os extremos, no primeiro caso, com mais renda; no segundo, com mais inteligência; no terceiro, com mais solidariedade.

O Estado tem a função de garantir condições para o crescimento econômico, e, logo, ao melhor remédio contra a fome: o emprego. Mas respostas emergenciais são indispensáveis através do robustecimento e racionalização de programas assistenciais. A cadeia de produtores, vendedores e consumidores de alimentos tem o desafio de buscar soluções para reduzir o desperdício.

Sem prejuízo disso tudo, é preciso cultivar a filantropia. Isso está ao alcance de cada um, se não doando dinheiro, doando tempo; se não para instituições filantrópicas, ajudando o próximo em agonia. Segundo o World Giving Index, desde a pandemia o Brasil subiu da 54.ª para a 18.ª posição no ranking de filantropia. Mas claramente isso ainda não foi suficiente. Ainda há para cada brasileiro um imenso potencial inexplorado para satisfazer a maior de todas as realizações humanas: o amor ao próximo.

Há que se indignar com os fracassos do Estado: os cidadãos dão seus votos e recursos para que seus direitos sejam satisfeitos, e o mais importante é o direito à vida digna. Enquanto houver uma só vida ameaçada pela fome, é preciso cobrar. Mas a indignação não encherá a barriga do seu próximo aqui e agora. A esperança no Estado é justa, mas, parafraseando um apóstolo, a esperança sem obras é morta.

Com pressão de comida e serviços, inflação cai devagar

Valor Econômico

Lula tem pressa e prefere disputas ideológicas, o que pode por tudo a perder e fazer a inflação disparar

A inflação está caindo vagarosamente, como mostra o IPCA de janeiro, de 0,53%, ou 5,77% em doze meses (5,79% em dezembro), o que torna difícil ao Banco Central reduzir com rapidez os juros, como querem ideólogos do PT e o presidente da República. A média dos núcleos do IPCA, que excluem elementos voláteis, recuou pouco, de 9,12% para 8,73% (MCM), e seis das nove classes de despesas avançaram no índice de janeiro em relação ao de dezembro.

Ainda que se ignore a situação fiscal, grave para alguns, indiferente para outros, seria necessário levar em conta as origens das pressões inflacionárias, que adviriam de escassez de oferta, excesso de demanda ou as duas. Hoje ainda há ainda um mix de ambas, mas predominam os efeitos de mais de R$ 300 bilhões de estímulos fiscais e parafiscais eleitoreiros do governo Bolsonaro, acrescidos dos R$ 167 bilhões da PEC de Transição patrocinada por Lula, antes da posse. A contribuição de quebras de oferta pesa, especialmente em alimentos, mas já foi mais relevante logo em seguida à pandemia.

A trajetória da inflação até agora não é amigável. Combustíveis jogaram papel determinante na disparada do IPCA e, depois, em sua queda. Bolsonaro mexeu nos impostos federais e o Congresso, também nos estaduais, para reduzir seus preços. O governo Lula, até segunda ordem, vai retirar a desoneração em fevereiro, em um momento em que a influência dos itens monitorados deixou de ser deflacionária e inverteu o sinal em janeiro (0,72%).

A projeção do BC para os preços administrados é de 10,6% no ano, de acordo com a ata do Copom, e seu peso no IPCA é de cerca de 25%. Se o BC estiver certo, os administrados preencherão 2 pontos percentuais de uma meta de 3,25%, que não deverá ser atingida pelo terceiro ano consecutivo. Não há problemas de oferta interna de combustíveis ou energia, mas eles seguem as voláteis cotações internacionais, que flutuam ao sabor de estoques e demanda, por sua vez influenciadas pelos fatores geopolíticos, como a guerra na Ucrânia.

O propulsor maior da inflação no IPCA são os alimentos, que variaram 11% em doze meses e 0,59% em janeiro. O excesso de chuvas agora, como a falta de chuvas antes do fim do ano, provocaram altas expressivas. Se o tempo não pregar peças, uma safra abundante deve derrubar o custo da comida, a menos que os preços das commodities disparem ou o real se desvalorize muito, o que ocorreu no passado e influiu no IPCA com mais constância do que o previsto. Essa combinação é traiçoeira e pode ter levado o BC a prever que a alta da inflação seria provisória. Após a Rússia invadir a Ucrânia, o diagnóstico foi abandonado.

A inflação de serviços, totalmente dependente do compasso da demanda interna, preocupa. A evolução em doze meses mostra persistência. Em janeiro, foi de 7,8%, ante 8,1% em outubro. Sem que a economia esfrie mais, a pressão de preços não recuará. Contribuem para mantê-la, porém, o aumento para R$ 600 mensais do Auxílio Brasil e a promessa, que deve se efetivar em breve, de aumento real do salário mínimo.

O conflito entre política monetária e política fiscal se acirrou com as diatribes de Lula contra o BC. A prevalência da posição do governo pode piorar o cenário inflacionário, não só pelas expectativas, que estão em alta. Em julho, agosto e setembro de 2022 o IPCA foi deflacionário, o que não deve ocorrer agora e o índice pode subir. Como a economia deve crescer, ainda que pouco, a inflação vai girar em torno de 6%.

Mudar a meta de inflação no ano corrente não terá efeito. Mantendo os juros em 13,75%, o IPCA projetado é de 5,5% o que, mantendo-se o intervalo das metas, exigiria um centro de 4% e margem de flutuação de 1,5 ponto percentual. Isto é, no ano corrente, a inflação está praticamente dada.

A ofensiva do governo para reduzir os juros, para ter efeitos, ainda que efêmeros, exige forte redução da Selic, o que arranharia a credibilidade do BC. Se o pragmatismo de Lula prevalecesse, seria melhor executar um programa de gastos contido, reduzindo estímulos e ajudando a política monetária a fazer seu serviço. A perspectiva do Focus, afinal, era de um corte para 12% da Selic, abrindo espaço a crescimento maior em 2024.

Com ajuda da política fiscal, reforma tributária e queda da inflação, que se reforçariam pela valorização do real, as perspectivas de uma retomada segura estariam no horizonte. Lula tem pressa e prefere disputas ideológicas, o que pode por tudo a perder e fazer a inflação disparar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bolsonaro "esvaziou os órgãos de fiscalização e implantou políticas lenientes com o garimpo ilegal, origem da tragédia humanitária. Será difícil para as autoridades comprovar que essa era a intenção dele ou de qualquer integrante de seu governo. Mas isso não significa que a hipótese não deva ser investigada."